O primeiro autor tratado na nossa série de posts quinzenais que aborda personalidades do mundo sombrio foi o extremamente popular e conceituado Edgar Allan Poe. Hoje falaremos de um homem que infelizmente poucos conhecem, mas que tem obras valiosíssimas cujas quais todos que se dizem amantes da literatura devem ler - especialmente quem tem inclinação para o macabro. Maupassant não era especificamente um escritor do gênero extraordinário (extraordinário cotidiano talvez), mas seus textos em grande parte carregam sordidez o suficiente para assim serem classificados.
Infelizmente o post de hoje será mais curto em relação ao primeiro por não haver tanta coisa que eu saiba a respeito de Maupassant e tampouco fontes que informem fatos inebriantes a respeito de sua pessoa - tal como a misteriosa morte de Poe ou o mistério das três rosas (ambos tratados aqui).
Enfim, embora pouco eu saiba da figura, Maupassant é um dos meus escritores favoritos; conheço bem sua obra e só digo uma coisa a respeito dela: leiam.
Guy de Maupassant
Henri René Albert Guy de Maupassant, ou simplesmente Guy de Maupassant (5 de Agosto, 1850, Fécamp - morto em 6 de Julho, 1893 Tourville-sur-Arques) foi um escritor e poeta francês com predileção para situações psicológicas e de crítica social com técnica realista. Foi amigo do célebre escritor francês Gustave Flaubert, a quem se referia como "mestre". Um dos maiores contistas de todos os tempos, teve uma infância e uma juventude aparentemente felizes no campo francês, em companhia da mãe, uma mulher culta, depressiva, que fora abandonada por um marido infiel. Na década de 1870, ele dirigiu-se a Paris, onde se notabilizou como contista e travou relações com os grandes escritores realistas e naturalistas da época: Zola, Flaubert e o russo Turgueniev.
Entre 1875 e 1885, produziu a maior parte de seus romances e contos. Escreveu pelo menos 300 histórias curtas, das quais algumas se tornaram universalmente conhecidas, como Bola de sebo, O colar, Uma aventura parisiense, Mademoiselle Fifi, Miss Harriett, entre outras. De forma muito rápida, conquistou o coração do público francês e o de outros países. Talvez tenha sido, nos últimos anos do século XIX, o escritor mais lido no mundo.
Com uma aversão natural à sociedade, ele amava a aposentadoria, solidão e meditação. Esta vida não o impediu de fazer amigos entre as celebridades literárias de sua época, embora: Alexandre Dumas tinha um carinho paternal por ele; em Aix-les-Bains ele conheceu Hippolyte Taine e tornou-se dedicado ao filósofo e historiador. Ele viajou extensivamente à Argélia, Itália, Inglaterra, Bretanha, Sicília, Auvergne (...) e de cada viagem trouxe de volta um novo volume. Seu editor, Havard, encarregou-o de escrever mais histórias, e mesmo sob pressão Maupassant continuou a produzi-las de forma eficiente.
A riqueza e a fama bateram à sua porta, e ele teve uma profusão de casos amorosos. No entanto, a partir de 1884 a sífilis manifestou-se em seu organismo, ocasionando-lhe uma doença nervosa feita de angústias inexplicáveis, de estremecimentos e de alucinações. Algumas dessas sensações estranhas e opressivas foram registradas em contos tão célebres quanto assustadores, como O Horla e É ele. Em 1892, após terríveis sofrimentos, tentou o suicídio. Internado num manicômio, veio a morrer no ano seguinte, em estado de semidemência, com apenas 43 anos de idade.
Obra geral
Além de romances e peças de teatro, Maupassant deixou 300 contos, todos obras de grande valor. Merecem destaque, entre os mais famosos, Mademoiselle Fifi eBola de sebo. "A Pensão Tellier" e "O Horla" podem ser considerados seus contos mais significativos.
Há quem julgue Maupassant um artista de superfície, por tentar reproduzir apenas a realidade exterior, sem maior aprofundamento psicológico. Alguns de seus contos, de fato, são crônicas de época; outros, meras anedotas. Contudo, como observou um crítico, “o escritor é profundo na aparente superficialidade porque reconhece o vazio da vida de suas personagens, que buscam o prazer, mas que encontram apenas a destruição fatal”.
Um aspecto que chama atenção na obra de Maupassant é a sua variedade temática. Poucos escritores conseguem dar esta impressão de registro de totalidade da existência, de criação de um universo fecundo, múltiplo e quase inesgotável. Como um pintor impressionista, Maupassant pinta as luzes de Paris: as que reverberam no Sena, as que cintilam nos parques e as que brilham à noite nos boulevards. Luzes que envolvem as personagens nos dramas essenciais da condição humana: a paixão, o prazer, a solidão, o tédio, a morte. É o cronista da vida européia do fim dos Oitocentos, mas também um escritor de dimensão universal.
Sua saga de curtas histórias e contos
Boule de suif
Coco, coco, coco frais !
Jadis
La Main d'écorché
Le Donneur d'eau bénite
Le Mariage du lieutenant Laré
Le Papa de Simon
Les Dimanches d'un bourgeois de Paris
Suicides
Sur l'eau
Une page d'histoire inédite
Au printemps
En famille
Épaves
Histoire corse
Histoire d'un chien
Histoire d'une fille de ferme
La Femme de Paul
La Maison Tellier
Par un soir de printemps
Opinion publique
Une aventure parisienne
Une partie de campagne
Autres temps
Aux champs
Ce cochon de Morin
Clair de lune - 1
Clair de lune - 2
Confessions d'une femme
Conflits pour rire
Conte de Noël
Correspondance
En voyage
Farce normande
Fou?
Histoire vraie
L'Aveugle
L'Enfant
La Bécasse
La Bûche
La Folle
La Légende du Mont-Saint-Michel
La Peur
La Relique
La Rempailleuse
La Roche aux Guillemots
La Rouille
La Veillée
Le Gâteau
Le Lit
Le Loup
Le Pardon
Le Saut du berger
Le Testament
Le Verrou
Le Voleur
Le Baiser
Ma femme
Madame Baptiste
Mademoiselle Fifi
Magnétisme
Marroca
Menuet
Mon oncle Sosthène
Mots d'amour
Nuit de Noël
Pétition d'un viveur malgré lui
Pierrot
Rencontre
Rêves
Rouerie
Souvenir
Un bandit corse
Un coq chanta
Un drame vrai
Un fils
Un million
Un Normand
Un parricide
Un réveillon
Un vieux
Une passion
Une ruse
Une veuve
Vieux Objets
Voyage de noce
Yveline Samoris
Au bord du lit
À cheval
Apparition
Auprès d'un mort
Décoré !
Denis
Deux Amis
En mer
En voyage (1883)
Enragée ?
Humble Drame
L'Ami Joseph
L'Ami Patience
L'Âne
L'Attente
L'Aventure de Walter Schnaffs
L'Enfant
L'Homme-fille
L'Odyssée d'une fille
L'Orphelin
La Confession
La Confession de Théodule Sabot
La Farce
La Fenêtre
La Ficelle
La Main
La Martine
La Mère aux monstres
La Moustache
La Reine Hortense
La Serre
La Toux
Le Cas de Mme Luneau
Le Condamné à mort
Le Mal d'André
Le Modèle
Le Pain maudit
Le Père
Le Père Judas
Le Père Milon
Le Petit
Le Remplaçant
Le Vengeur
Les Bijoux
Les Caresses
Les Sabots
Lui?
M. Jocaste
Mademoiselle Cocotte
Miss Harriet
Mon oncle Jules
Première neige
Regret
Réveil
Saint-Antoine
Tombouctou
Un coup d'état
Un duel
Un sage
Une soirée
Une surprise
Une vendetta
Adieu
Berthe
Bombard
Coco
Châli
Découverte
Garçon, un bock !...
Idylle
L'Abandonné
L'Aveu
L'Héritage
L'Horrible
La Chambre 11
La Chevelure
La Confession
La Dot
La Mère Sauvage
La Parure
La Patronne
La Peur
Le Baptême
Le Bonheur
Le Garde
Le Gueux
Le Lit 29
Le Parapluie
Le Protecteur
Le Retour
Le Tic
Le Vieux
Lettre trouvée sur un noyé
Les Idées du colonel
Les Sœurs Rondoli
Mohammed-Fripouille
Misti
Notes d'un voyageur
Promenade
Rencontre
Rose
Solitude
Souvenirs
Tribunaux rustiques
Un fou ?
Un lâche
Une vente
Vains Conseils
Yvette
À vendre
Blanc et Bleu
Ça ira
En wagon
Fini
Imprudence
La Bête à Maît' Belhomme
La Confidence
Le Baptême (1885)
Le Moyen de Roger
Le Père Mongilet
L'Épingle
Les Bécasses
Lettre d'un fou
L'Inconnue
Mes vingt-cinq jours
Monsieur Parent
Nos Anglais
Petit Soldat
Sauvée
Toine
Un échec
Un fou
Une lettre
Amour
Au bois
Clochette
Cri d'alarme
Jour de fête
Julie Romain
La Question du latin
L'Auberge
L'Épave
L'Ermite
Le Diable
Le Fermier
Le Père Amable
Le Signe
Le Trou
Madame Parisse
Mademoiselle Perle
Misère humaine
Rosalie Prudent
Sur les chats
Un cas de divorce
Une famille
Voyage de santé
Comment on cause
Duchoux
Étrennes
L'Assassin
L'Homme de Mars
L'Ordonnance
La Baronne
La Morte La Nuit
La Porte Le Horla
Le Lapin
Le Père
Le Rosier de Madame Husson
Le Vagabond
Le Voyage du Horla
Les Rois
Madame Hermet
Moiron
Divorce
L'Infirme
Le Noyé
Les Épingles
Les 25 Francs de la supérieure
Nos lettres
Un portrait
Alexandre
Allouma
Boitelle
Hautot père et fils
L'Endormeuse
L'Épreuve
L'Ordonnance
La Main gauche
Le Masque
Le Port
Le Rendez-vous
Un soir
Le Champ d'oliviers
L'Inutile Beauté
Mouche
Qui sait ?
Après
Le Colporteur
Le Docteur Héraclius Gloss
Les Tombales
O terror da loucura
Uma coisa muito interessante em Maupassant é que contos como Le Horla e Qui sait? descrevem fenômenos aparentemente sobrenaturais mas, no entanto, muita gente vem os tratando implicitamente como sintomas das mentes perturbadas dos protagonistas; Maupassant foi fascinado pela disciplina emergente da psiquiatria, e participava assiduamente das palestras públicas de Jean-Martin Charcot entre 1885 e 1886.
Há também uma forte tendência do perturbado e perturbador flanêur evidente em muitas de suas histórias, como no belíssimo La Nuit. O que direi a seguir é uma observação pessoal que fiz e não sei se ela tem quaisquer fundamentos lógicos além de meu delírio e necessidade de identificação com Maupassant, portanto peço que você, leitor, diga em qual aspecto concorda ou discorda do meu ponto.
Antes de mais nada, para quem não sabe, o flâneur é ser que observa o mundo que o cerca de maneira real e descritiva, levando a vida para cada lugar que vê. O flâneur descreve as cidades, as ruas, os becos, o externo. Desvincula-se do particular, recrimina o privado, de forma a ver a rua como lar, refúgio e abrigo. Este sentimento flaneuriano reflete a necessidade de segurança do indivíduo, a necessidade de identificação dele para com a sociedade. A rua é seu lar, seu mundo. Ali nada é estranho ou prejudicial. Na rua se sente confortável e protegido. O flâneur do século XIX representou a angústia da Revolução Industrial.
Creio que o narrador de La Nuit é um flanêur com gosto especificamente para a noite, e heroicamente é tragado por ela no final. Trata-se da narração de uma perambulação noturna por Paris, que vai da exaltação ao pesadelo. Pouco a pouco a cidade se esvazia- luzes e cores, sinais identificadores da
noite, apagam-se. A noite torna-se ausência de vida, escuridão absoluta, um buraco negro, conduzindo
o narrador-herói à afasia e ao apagamento. Inicialmente, na abertura, temos “a narrativa passional da noite”, figura do amor e do desejo de amar, que gradativamente forma um verdadeiro sentimento passional, levando o protagonista à estranha condução do conto. Logo ele está a observar mundos reais ou imaginários? A viagem na verdade é uma aliteração de seu interior? O andarilho está morto ou vivo, afinal?! Chega a ser opressor e claustrofóbico, e é ao nos passar tal sentimento instigante que Maupassant perturba-nos como o genial escritor fantástico que é, sem fazer uso de quaisquer elementos apelativos.
Como disse o amigo Luiz Riesemberg, os contos fantásticos de Guy de Maupassant obviamente não contêm cenas sangrentas de demônios arrancando as vísceras das vítimas e coisas do tipo. Trata-se de literatura de classe, de alta qualidade, que pode até não ter nada de sobrenatural conforme a interpretação do leitor, mas que fará até mesmo o mais cético ficar em dúvida e (por que não?), sentir calafrios pela espinha.
Conheça agora!
Trago ao visitante o endereço dos maravilhosos sites Contos do Covil e Garganta da Serpente, onde você pode ler muito mais não apenas de Maupassant também de outros magníficos autores do extraordinário. Abaixo, dois contos selecionados com muito zelo com o intuito de introduzi-lo à insanidade de Guy:
Depois de jantarmos, retornamos ao convés do navio. Diante de nós, a superfície lisa do Mediterrâneo refletia uma lua tranqüila. O enorme navio sulcava as águas sob um céu semeado de estrelas, e a esteira branca que deixava para trás brincava em espumas, parecendo retorcer-se em claridades tão buliçosas, que se poderia dizer que a luz da lua estava fervendo.
Seis ou sete homens permanecíamos ali, em silenciosa admiração, enquanto viajávamos para a África distante. O capitão retomou a conversa que havíamos tido durante o jantar:
— Sim, naquele dia eu tive medo. Meu navio permaneceu seis horas açoitado pelas ondas, com um penhasco encravado no ventre. Por sorte, à noite passou um navio mercante inglês, que nos viu e nos recolheu.
Então um dos presentes resolveu contestar a expressão usada pelo capitão. Era um homem alto, de cara bronzeada pelo sol, com aspecto grave; um desses homens que à primeira vista nos dão a impressão de haver percorrido vastos países desconhecidos em meio a incessantes perigos, e cujo olhar sereno parecia guardar, na sua profundidade, algo das estranhas paisagens que vira; um desses homens que adivinhamos dotado de têmpera extraordinária.
— Capitão, o Sr. diz que teve medo, mas não o creio. O Sr. parece enganar-se sobre a palavra e sobre a sensação que teve. Um homem enérgico como o senhor nunca sente medo diante do perigo. Sente emoção, nervosismo, ansiedade, mas medo é outra coisa.
— Discordo! Asseguro-vos que tive medo!
— Permita-me que lhe explique. Até os homens mais intrépidos podem ter medo. Mas o medo é algo espantoso, uma sensação atroz, como uma desintegração da alma, um espasmo horrível do pensamento e do coração, cuja simples recordação dá estremecimentos de angústia. Mas quando se é valente, isso não ocorre nem diante de uma batalha, nem diante da morte inevitável nem diante de nenhuma das formas conhecidas do perigo. Acontece em certas circunstâncias anormais, sob certas influências misteriosas e diante de riscos indefinidos. O verdadeiro medo é como uma reminiscência dos fantásticos terrores primitivos. Um homem que acredita em fantasmas, e que imagina ver um espectro na noite, deve experimentar o medo em todo seu espantoso horror.
Eu descobri o que de fato é o medo há uns dez anos, em pleno dia. E pude experimentá-lo também no último inverno, numa noite de dezembro. Na verdade, passei já por muitas situações, muitos reveses, muitas aventuras que pareciam mortais: em certa ocasião, uns ladrões me deixaram como morto; na América, fui condenado à forca por motivo de rebelião; na China, fui jogado ao mar, da proa de um navio. Cada vez que me julguei perdido, tomei minhas decisões imediatamente, sem vacilar, e até mesmo sem pensar. Mas isso não é o medo.
Observem, senhores, que entre os orientais a vida não conta para nada. Logo se resignam. As noites são claras, órfãs das sombrias inquietudes que atormentam os cérebros nos países frios. No Oriente pode-se conhecer o pânico, mas se ignora o medo. Vou narrar-lhes o que me aconteceu na África.
Percorria eu as grande planícies ao sul de Ouargla. É um dos mais estranhos países do mundo. Os senhores conhecem a areia fina, a areia lisa das intermináveis praias do oceano. Imaginem agora o próprio oceano convertido em areia, em meio a um furacão. Imaginem uma tempestade silenciosa das ondas imóveis de pó amarelo. Essas ondas desiguais são altas como montanhas, encrespadas como torrentes desencadeadas, mas maiores ainda, e estriadas como a ágata. Sobre esse mar furioso, mudo e sem movimento, o sol devorador do Sul lança sua chama implacável e direta. Tem-se que subir nessas ondas de cinza dourada, subir mais uma vez, mais outra, subir sem cessar, sem descanso e sem proteção. Os animais se atolam até os joelhos, e resvalam ao descer pela outra vertente das surpreendentes colinas.
Éramos dois amigos, escoltados por oito spahis seguidos de quatro camelos com seus cameleiros. Íamos por aquele deserto ardente sem falar, assolados pelo calor, pelo cansaço e pela sede. Subitamente um dos homens deu um grito, e todos paramos e permanecemos imóveis, surpreendidos por um inexplicável fenômeno que os viajantes dessas regiões perdidas conhecem bem. Em algum lugar, perto de nós, numa direção indeterminada, soava um misterioso tambor, o misterioso tambor das dunas. Soava claramente, ora mais vibrante ora menos, cessando e logo recomeçando seu som fantástico. Os árabes, espantados, olhavam-se uns aos outros. Um deles disse:
— A morte vem para cima de nós.
De repente meu companheiro, meu amigo quase como um irmão, caiu do cavalo, de bruços, mortalmente atingido pela insolação. Durante duas horas, enquanto eu procurava em vão salvá-lo, aquele tambor, sempre impossível de localizar, me aturdia os ouvidos com seu ruído monótono, intermitente, inexplicável. Então senti que o medo, o verdadeiro medo, o horrível medo, me penetrava até à medula dos ossos, diante daquele cadáver querido, naquela depressão vergastada pelo sol entre quatro montes de areia, enquanto o eco desconhecido nos lançava, a duzentas léguas do povoado francês mais próximo, o dobre rápido de um inatingível tambor. Naquele dia eu compreendi o que é ter medo. Mas houve uma outra vez em que compreendi melhor ainda…
— Perdão, senhor, mas o que era esse tambor? — interrompeu o capitão.
— Não sei. Ninguém sabe. Os oficiais que depararam com esse surpreendente ruído geralmente o atribuem ao eco aumentado, multiplicado, desmesuradamente insuflado pelas ondulações das dunas, de um granizo de areia que o vento lança contra uma mata de ervas secas, pois já se notou que o fenômeno sempre se produz nas proximidades de pequenas plantas queimadas pelo sol, duras como o pergaminho. Segundo essa teoria, aquele tambor nada mais seria do que uma espécie de reflexo ampliado desse som. Mas eu só vim a saber disso mais tarde.
Agora vou lhes contar minha segunda sensação de medo. Aconteceu no inverno passado, num bosque do Noroeste da França. O céu estava tão sombrio naquele dia, que a noite caiu duas horas mais cedo. Era meu guia um camponês, que caminhava ao meu lado por uma trilha estreita numa floresta de abetos. O vento arrancava dessas árvores uma espécie de alarido. Por entre as copas das árvores eu via as nuvens que corriam, como que fugindo de um cataclismo. Às vezes, ante uma forte lufada de vento, todo o bosque se inclinava no mesmo sentido, com um gemido de sofrimento, e o frio me invadia, apesar do meu passo rápido e da minha grossa roupa de lã.
Tínhamos que chegar à casa de um guarda florestal, para jantar e dormir. Não estava muito distante, e eu me encontrava ali como caçador. Meu guia às vezes levantava os olhos e murmurava: “Que tempo triste!” Falou-me sobre as pessoas para cuja casa nos dirigíamos. O pai havia matado um caçador furtivo, dois anos antes, e desde então andava preocupado, como que atormentado por uma lembrança. Seus filhos, já casados, moravam com ele.
A escuridão era profunda, e eu não via nada ao redor de mim. As ramagens de todas as árvores, ao agitar-se, enchiam a noite de um rumor incessante. Afinal vi uma luz, e meu guia chamou a uma porta. Ouvimos gritos de mulheres lá dentro. Logo depois, uma voz de homem, como que estrangulada, perguntou: “Quem está aí?” Meu guia se identificou, a porta se abriu e entramos.
A cena que vimos é impossível de esquecer. Um homem velho, de cabelos brancos e com olhar arregalado e fixo, como de louco, nos aguardava de pé no meio da cozinha, tendo na mão uma espingarda carregada. Dois rapazes com pedaços de pau guardavam a porta. Na obscuridade, percebemos duas mulheres ajoelhadas, com os rostos voltados para a parede. Identificamo-nos, explicamos o motivo de nossa presença ali, e então o velho largou a arma e deu ordens para que nos preparassem acomodações. As duas mulheres continuavam imóveis, então ele me explicou: “Há exatamente dois anos, numa noite como esta, eu matei um homem. Quando se completou um ano, ele veio chamar-me, e esta noite eu estou certo de que voltará novamente. Por isso estamos todos intranqüilos”.
Procurei tranqüilizá-los o melhor que pude, mas intimamente estava satisfeito por ter chegado exatamente naquela noite e presenciar aquele espetáculo de terror supersticioso. Contei algumas histórias, e acabei por acalmá-los quase por completo.
Perto da lareira, um cachorro velho e quase cego — um desses cães que nos lembram alguma pessoa conhecida — dormia com o focinho entre as patas. Fora, a tormenta açoitava a choupana. Por uma estreita vidraça eu via passar, projetadas por grandes relâmpagos, as sombras de árvores agitadas pelo vento. Apesar dos meus esforços, aquela gente estava dominada por um terror profundo. Cada vez que eu parava de falar, todos os ouvidos estavam atentos ao menor ruído. Cansado desses temores imbecis, eu já ia recolher-me quando o velho pulou da cadeira e pegou de novo a espingarda, balbuciando com voz trêmula: “Aí está! Aí está! Já o estou ouvindo!”
As duas mulheres voltaram a cair de joelhos, cobrindo os rostos, e os filhos pegaram de novo os seus paus. Já ia eu tentar novamente tranqüilizá-los, quando o cachorro despertou bruscamente, levantou a cabeça, esticou o pescoço, olhando para a lareira com seu olhar quase apagado, e lançou um desses ganidos lúgubres, que fazem estremecer os caminhantes quando cruzam de noite locais ermos. Todos os olhos se voltaram para o animal, que permanecia agora imóvel sobre as patas, como obcecado por uma visão. O cão se pôs a ganir frente a algo invisível, desconhecido, espantoso sem dúvida, pois todo seu pelo estava eriçado. Lívido, o guarda gritou: “Ele o está farejando! Está farejando! Ele estava exatamente aí, quando o matei!”
As mulheres, como loucas, fizeram coro aos ganidos do cachorro. Um grande calafrio me percorreu a espinha. A visão do animal naquele lugar, naquela hora, em meio a pessoas apavoradas, era algo horrível. Durante uma meia hora o cão ganiu sem mover-se. Um medo espantoso me ia penetrando. Medo de quê? Lá sei eu. Era medo, pura e simplesmente.
Permanecemos imóveis, lívidos, à espera de um acontecimento horrendo, com o ouvido atento, o coração agitado, transtornados ao menor ruído. O cachorro se pôs a dar voltas ao redor da cozinha, farejando as paredes, sem cessar de gemer. O animal nos punha loucos. Então o meu guia se lançou sobre ele, numa espécie de paroxismo de terror furioso, agarrou-o, abriu uma porta de trás, que dava para uma espécie de cercado, e o lançou para fora da casa.
O cachorro se calou logo, e permanecemos algum tempo envoltos num silêncio ainda mais terrível. De repente, todos tivemos uma espécie de sobressalto: algo deslizava contra a parede externa, em direção ao bosque. Depois passou junto à porta, que pareceu apalpar com mãos trêmulas. Novo silêncio durante uns dois minutos, que nos deixou aterrorizados. Depois voltou, roçando sempre a parede, como uma criança com suas unhas. Subitamente apareceu junto à vidraça uma cabeça branca, com dois olhos luminosos como os das feras, e emitiu um gemido — um murmúrio como de quem se lamenta.
Nesse momento se ouviu um ruído formidável. O velho havia disparado sua arma, e em seguida os filhos se precipitaram para a vidraça, cobrindo-a com o tampo de uma grande mesa que reviraram. Com o estrépito do inesperado disparo, senti tal angústia no coração, na alma e no corpo, que me imaginei prestes a perder os sentidos, disposto a morrer de medo. Continuamos ali até o amanhecer, incapazes de mover-nos, de dizer uma palavra, crispados, desvairados. Ninguém se atreveu a abrir a porta antes de entrever alguma claridade fora, pelas frestas das madeiras.
Ao lado do muro, junto à porta, jazia o corpo do velho cachorro, com o focinho desfeito por uma bala. Havia saído do cercado, e procurara abrir alguma passagem junto à porta.
Naquela noite eu não corri nenhum perigo. Mas preferiria voltar a enfrentar todos os riscos mais terríveis que já enfrentei, para não ter de viver aquele único minuto em que o tiro foi disparado na cabeça que surgiu na vidraça.
Eu amo a noite com paixão. Amo como se ama o seu país ou sua amante, um amor instintivo, profundo, invencível. Eu a amo com todos os meus sentidos, com meus olhos que veem, com o meu nariz que respira, com os meus ouvidos que escutam o silêncio e as trevas que minha carne acaricia. As cotovias cantam ao sol, no céu azul, com ar quente, na suave brisa das manhãs de luz. A coruja voa durante a noite neste mesmo lugar, o negro que passa através do espaço escuro e encantador, embriagado pela imensidão sombria ela pia de forma vibrante e sinistra.
Durante a claridade do dia fico cansado, entediado. As manhãs são duras e barulhentas. Me levanto com dificuldades, visto-me devagar, saio todo molenga, pois cada passo, cada movimento, cada gesto, cada palavra, cada pensamento me cansa como se levantasse um peso opressor.
Porém quando o sol se põe, surge-me uma alegria confusa, uma satisfação que anima todo meu corpo. Eu desperto, fico motivado. Quando as sombras surgem sinto-me diferente, mais jovem, mais forte, mais alerta, mais feliz. Eu contemplo a penumbra ficar cada vez mais densa, a grande sombra cair suavemente do céu: ela afoga a cidade, como uma onda fugaz e incompreensível, ela esconde, apaga, destrói a cor, deforma, oculta as pessoas, casas, e os monumentos com seu toque imperceptível.
Então, eu quero gritar de prazer como as corujas, correr sobre os telhados como os gatos, explosões dilatam meu corpo, um desejo de amar incontrolável se acende nas minhas veias. Eu então saio, seguindo sem rumo às vezes, nos escuros subúrbios, ou então no bosque perto de Paris, onde eu ouço meus noturnos irmãos animais vagando e caçando meus semelhantes.
Aquilo que você ama com violência sempre acaba te matando. Mas como explicar isto que está acontecendo comigo? Ou como posso explicar aquilo que vivo? Eu não sei bem, já não sei mais, só sei que é real. Só isso! Aconteceu ontem; foi ontem? Sim, provavelmente, talvez tenha ocorrido anteontem, ou dias atrás, quem sabe num outro mês, ou alguns anos antes... Não sei. Mas deve ter sido ontem porque o sol não voltou a aparecer e o dia nunca mais raiou. Quanto dura uma noite? Qual é sua intensidade? Alguém saberá dizer? Alguém conhece?
Foi então ontem, eu saí como faço todas as noites depois do jantar. O tempo estava muito bonito, muito suave, muito quente. Segui até os Bulevares olhando, sobre a minha cabeça, um rio preto cheio de estrelas correndo no céu além dos telhados das ruas, como se as telhas das casas demarcassem as margens daquele rio torrencial de estrelas. Tudo estava claro, como um ar leve, dês da luz dos planetas até as lâmpadas a gás. Então, muitas luzes brilhavam lá em cima e na cidade que parecia um foco de luz na escuridão. As noites são brilhantes e felizes, como os grandes dias de sol.
No Bulevar os cafés eram sorvidos por pessoas noturnas, eles riam, pediam mais café e bebiam. Entrei no teatro, por alguns instantes, mas em qual teatro? Não sei. Estava tão claro que me desanimou então eu fugi com o coração ofuscado pelo choque de luz douradas das sacadas, pelo lustres de cristais cintilantes falsos e enormes, pela cortina de fogo da ribalta, pela melancolia da claridade falsa e crua. Cheguei ao Champs-Elysees, onde os cafés-concertos pareciam incêndios entre as folhas.
As castanheiras friccionavam uma luz amarela, elas pareciam pintada como árvores fosforescentes. As luzes elétricas assemelhavam-se as luas brilhantes e pálidas, eram ovos de lua caídas do céu, pérolas monstruosas, vivas, lívidas com seus bicos de gás encarnado, misteriosa e real, com gás sujo e desagradável, como guirlandas de vidros coloridos. Parei em baixo do Arco do Triunfo e olhei para a avenida, a longa e maravilhosa avenida estrelada, seguindo até Paris entre duas linhas de fogo, e vários Sois! Os astros lá em cima, estranhos astros jogados aleatoriamente na vastidão desenhando figuras adversas, formatos que nos fazem sonhar, que nos fazem pensar tanto. Entrei no Bois de Boulogne e fiquei lá demoradamente, por muito tempo. Um tremor apoderou-se de mim, uma emoção estranha, inesperada, poderosa, era alguma exaltação do meu cogitar que beirava a insanidade.
Andei um longo, longo tempo. Depois voltei.
Que horas eram quando tornei a passar sob o Arco do Triunfo? Também não sabia. A cidade dormia, em nuvens, grandes nuvens escuras que se alastravam lentamente pelo céu. Pela primeira vez eu senti que algo singular, novo, iria acontecer. Tive a impressão que estava frio, um ar mais denso cresceu, naquela noite, minha noite mais amada, meu coração ficou pesado. A avenida estava deserta agora. Apenas dois policiais caminhavam na direção dos táxis. Na rua, mal iluminada pelos lampiões a gás que pareciam apagar, seguiam uma fila de carroças de legumes indo para Les Halles.
Elas eram puxadas lentamente, carregadas com cenouras, nabos e repolhos. Os cocheiros dormiam, invisíveis. Os cavalos andavam no mesmo ritmo, seguindo a carroça da frente, em silêncio pela calçada de madeira. Diante das luzes da calçada eram iluminadas de vermelho as cenouras, de branco os nabos, de verde claro os repolhos. Carruagens que passavam uma após a outra, com mercadorias brilhantes, uma tinha um rubro flamejante como fogo, cintilante semelhante prata e a seguinte esverdeada igual à esmeralda. Segui elas, quando virei na rua Royale e voltei para os Bulevares. Ninguém, nenhum café iluminado, apenas alguns atrasados marchando tardiamente. Eu nunca tinha visto Paris tão morta como um deserto. Peguei meu relógio. Eram duas horas.
Uma força me empurrava, era uma necessidade de andar. Então eu fui para a Bastilha. Lá percebi que eu nunca tinha visto uma noite tão escura assim, porque não conseguia distinguir a Colonne de Juillet, cuja engenharia de ouro estava perdida na escuridão impenetrável. Um cobertor de nuvens, grossas como a imensidão, afogando as estrelas e parecia descer à Terra para destruí-la.
Voltei. Não havia ninguém ao meu redor. Porém, na praça Du Chateau d'Eau, um bêbado quase me bateu e depois desapareceu. Eu ouvi por algum tempo seus passos sonoros e irregulares. Eu continuei seguindo. Próximo do Faubourg Montmartre passou um táxi descendo na direção do Sena. Eu chamei. O motorista não respondeu. Uma mulher estava perambulando perto da Rue Drouot:
- Cavalheiro, escute.
Apertei meus passos para evitar a sua mão estendida. Daí então, mais nada. Na frente do Vaudeville um catador de trecos vasculhava a sarjeta. Sua pequena lanterna iluminava fracamente o chão.
- Que horas são, amigo? perguntei.
- Como vou saber, não tenho relógio!- ele falou entre os dentes.
Foi então que eu percebi, de repente, que as luminárias de gás estavam desligadas. Sei que nesta estação do ano elas são apagadas mais cedo, antes de amanhecer para economizar energia. Porém o dia ainda estava longe, muito longe de raiar.
- Vamos para Les Halles, pensei, pelo menos lá irei encontrar vida.
Segui meu caminho, mas eu não conseguia ver nada para me orientar. Caminhei lentamente, como se estivesse numa floresta densa, tateando as ruas para desvendá-las. Próximo do Credit Lyonnais um cão rosnou. Entrei na Rue de Grammont e me perdi, vaguei então sem rumo, quando reconheci a Bolsa pelas grades de ferro que a rodeavam.
Toda Paris dormia, um sono profundo, assustador. Ao longe, no entanto, vi novamente um táxi, talvez tenha sido o mesmo que passou por mim mais cedo. Tentei alcançá-lo, seguindo o som das suas rodas, pelas ruas desertas e enegrecidas, negra, negra como a morte. Eu o perdi novamente. Onde eu estava? Quem seria tão tolo para desligar o gás tão cedo! Ninguém mais vi na cidade, nenhum andarilho atrasado, nenhum vagabundo, nenhum gato miando para sua felina. Nada.
Onde estavam os policiais? Então eu disse: "Vou gritar, assim eles virão." Me lamentei. Porque ninguém respondeu. Berrei mais alto. Minha voz se propagou no espaço, sem eco, diminuindo abafada, esmagada pela noite, pela noite impenetrável.
- Socorro! Socorro! – Gritei.
Meu apelo desesperado ficou sem resposta. A que horas foi isso? Tentei olhar para meu relógio, porém eu não tinha fósforos. Eu ouvia o tique-taque da pequena caixa de engrenagens mecânica com uma bizarra e desconhecida alegria. Ele parecia viver. Eu não me sentia tão sozinho. Que mistério! Eu voltei a andar como um cego, sentindo as paredes com minha bengala, onde todo momento voltava meus olhos para o céu, esperando o dia raiar e finalmente a luz aparecer, mas o espaço estava soturnamente revolto, todo negro, a escuridão tinha tamanha profundidade que não havia mais cidade.
Que horas poderiam ser? Eu andava, parecia aquele momento uma eternidade, porque minhas pernas involuntariamente curvavam-se abaixo de mim, meu peito arfava e eu sofri terrivelmente com fome. Decidi tocar a campainha da primeira casa que eu esbarrasse. Eu puxei a maçaneta de bronze da porta, toquei o sino da campainha, ele soava estranhamente como se estivesse vibrando sozinho na casa. Eu esperei sem respostas, ninguém abriu a porta. Toquei novamente, esperei mais uma vez. Nada!
Eu sentia medo! Corri para a próxima casa, e por vinte vezes naquela calçada eu fiz soar a campainha num corredor escuro onde deveria estar dormindo algum porteiro. Mas ele não acordou, então eu foi mais longe, puxando com toda a minha insistência os sinos, chutando com meus pés, batia minha bengala nas portas, no entanto permaneceram fechadas.
De repente percebi que estava chegando ao Halles. Os mercados estavam desertos, sem murmúrio, sem um único movimento, sem uma carroça, sem uma alma sequer, na havia nenhum banca de legumes ou flores. Tudo ali estava vazio, imóvel, abandonado, morto!
Um pânico se apoderou de mim, algo terrível. O que estava acontecendo? Oh meu Deus! O que estava acontecendo?
Eu parti. Mas que hora? A hora! Quem me indicaria o tempo? Nenhum relógio, nenhuma badalada soou nos sinos dos monumentos.
- Vou abrir o vidro do meu relógio e sentir os ponteiros com os dedos. pensei. Peguei meu relógio... ele não trabalhava mais... estava parado. Nada! Nada mais, além de um frio na cidade, eu não percebia nenhum chiado, nenhum ruído se propagava pelo ar. Nada! Nada mesmo! Nenhum único som das rodas de um distante carro. Absolutamente nada!
Eu estava no cais, e uma brisa gélida saia do rio. O Sena corria ainda? Eu agora queria saber, encontrei as escadas, desci... Eu não conseguia ouvir o borbulhar do fluxo das águas nas colunas da ponte... desci mais um pouco... senti a areia... depois a lama... então a água... Mergulhei meu braço... corria... sim o rio ainda corria... Frio... Frio... Frio... quase congelado... quase seco... quase morto. Eu senti que não conseguiria ter forças para recuar... e que o rio iria desfalecer ali... Eu também, de fome, de cansaço, de frio.
otimo post Cian como sempre ^^
ResponderExcluirAw, muitíssimo obrigado, moça!
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