O primeiro autor tratado na nossa série de posts quinzenais que aborda personalidades do mundo sombrio foi o extremamente popular e conceituado Edgar Allan Poe. Hoje falaremos de um homem que infelizmente poucos conhecem, mas que tem obras valiosíssimas cujas quais todos que se dizem amantes da literatura devem ler - especialmente quem tem inclinação para o macabro. Maupassant não era especificamente um escritor do gênero extraordinário (extraordinário cotidiano talvez), mas seus textos em grande parte carregam sordidez o suficiente para assim serem classificados.
Infelizmente o post de hoje será mais curto em relação ao primeiro por não haver tanta coisa que eu saiba a respeito de Maupassant e tampouco fontes que informem fatos inebriantes a respeito de sua pessoa - tal como a misteriosa morte de Poe ou o mistério das três rosas (ambos tratados aqui).
Enfim, embora pouco eu saiba da figura, Maupassant é um dos meus escritores favoritos; conheço bem sua obra e só digo uma coisa a respeito dela: leiam.
Guy de Maupassant
Henri René Albert Guy de Maupassant, ou simplesmente Guy de Maupassant (5 de Agosto, 1850, Fécamp - morto em 6 de Julho, 1893 Tourville-sur-Arques) foi um escritor e poeta francês com predileção para situações psicológicas e de crítica social com técnica realista. Foi amigo do célebre escritor francês Gustave Flaubert, a quem se referia como "mestre". Um dos maiores contistas de todos os tempos, teve uma infância e uma juventude aparentemente felizes no campo francês, em companhia da mãe, uma mulher culta, depressiva, que fora abandonada por um marido infiel. Na década de 1870, ele dirigiu-se a Paris, onde se notabilizou como contista e travou relações com os grandes escritores realistas e naturalistas da época: Zola, Flaubert e o russo Turgueniev.
Entre 1875 e 1885, produziu a maior parte de seus romances e contos. Escreveu pelo menos 300 histórias curtas, das quais algumas se tornaram universalmente conhecidas, como Bola de sebo, O colar, Uma aventura parisiense, Mademoiselle Fifi, Miss Harriett, entre outras. De forma muito rápida, conquistou o coração do público francês e o de outros países. Talvez tenha sido, nos últimos anos do século XIX, o escritor mais lido no mundo.
Com uma aversão natural à sociedade, ele amava a aposentadoria, solidão e meditação. Esta vida não o impediu de fazer amigos entre as celebridades literárias de sua época, embora: Alexandre Dumas tinha um carinho paternal por ele; em Aix-les-Bains ele conheceu Hippolyte Taine e tornou-se dedicado ao filósofo e historiador. Ele viajou extensivamente à Argélia, Itália, Inglaterra, Bretanha, Sicília, Auvergne (...) e de cada viagem trouxe de volta um novo volume. Seu editor, Havard, encarregou-o de escrever mais histórias, e mesmo sob pressão Maupassant continuou a produzi-las de forma eficiente.
A riqueza e a fama bateram à sua porta, e ele teve uma profusão de casos amorosos. No entanto, a partir de 1884 a sífilis manifestou-se em seu organismo, ocasionando-lhe uma doença nervosa feita de angústias inexplicáveis, de estremecimentos e de alucinações. Algumas dessas sensações estranhas e opressivas foram registradas em contos tão célebres quanto assustadores, como O Horla e É ele. Em 1892, após terríveis sofrimentos, tentou o suicídio. Internado num manicômio, veio a morrer no ano seguinte, em estado de semidemência, com apenas 43 anos de idade.
Obra geral
Além de romances e peças de teatro, Maupassant deixou 300 contos, todos obras de grande valor. Merecem destaque, entre os mais famosos, Mademoiselle Fifi eBola de sebo. "A Pensão Tellier" e "O Horla" podem ser considerados seus contos mais significativos.
Há quem julgue Maupassant um artista de superfície, por tentar reproduzir apenas a realidade exterior, sem maior aprofundamento psicológico. Alguns de seus contos, de fato, são crônicas de época; outros, meras anedotas. Contudo, como observou um crítico, “o escritor é profundo na aparente superficialidade porque reconhece o vazio da vida de suas personagens, que buscam o prazer, mas que encontram apenas a destruição fatal”.
Um aspecto que chama atenção na obra de Maupassant é a sua variedade temática. Poucos escritores conseguem dar esta impressão de registro de totalidade da existência, de criação de um universo fecundo, múltiplo e quase inesgotável. Como um pintor impressionista, Maupassant pinta as luzes de Paris: as que reverberam no Sena, as que cintilam nos parques e as que brilham à noite nos boulevards. Luzes que envolvem as personagens nos dramas essenciais da condição humana: a paixão, o prazer, a solidão, o tédio, a morte. É o cronista da vida européia do fim dos Oitocentos, mas também um escritor de dimensão universal.
Sua saga de curtas histórias e contos
Boule de suif
Coco, coco, coco frais !
Jadis
La Main d'écorché
Le Donneur d'eau bénite
Le Mariage du lieutenant Laré
Le Papa de Simon
Les Dimanches d'un bourgeois de Paris
Suicides
Sur l'eau
Une page d'histoire inédite
Au printemps
En famille
Épaves
Histoire corse
Histoire d'un chien
Histoire d'une fille de ferme
La Femme de Paul
La Maison Tellier
Par un soir de printemps
Opinion publique
Une aventure parisienne
Une partie de campagne
Autres temps
Aux champs
Ce cochon de Morin
Clair de lune - 1
Clair de lune - 2
Confessions d'une femme
Conflits pour rire
Conte de Noël
Correspondance
En voyage
Farce normande
Fou?
Histoire vraie
L'Aveugle
L'Enfant
La Bécasse
La Bûche
La Folle
La Légende du Mont-Saint-Michel
La Peur
La Relique
La Rempailleuse
La Roche aux Guillemots
La Rouille
La Veillée
Le Gâteau
Le Lit
Le Loup
Le Pardon
Le Saut du berger
Le Testament
Le Verrou
Le Voleur
Le Baiser
Ma femme
Madame Baptiste
Mademoiselle Fifi
Magnétisme
Marroca
Menuet
Mon oncle Sosthène
Mots d'amour
Nuit de Noël
Pétition d'un viveur malgré lui
Pierrot
Rencontre
Rêves
Rouerie
Souvenir
Un bandit corse
Un coq chanta
Un drame vrai
Un fils
Un million
Un Normand
Un parricide
Un réveillon
Un vieux
Une passion
Une ruse
Une veuve
Vieux Objets
Voyage de noce
Yveline Samoris
Au bord du lit
À cheval
Apparition
Auprès d'un mort
Décoré !
Denis
Deux Amis
En mer
En voyage (1883)
Enragée ?
Humble Drame
L'Ami Joseph
L'Ami Patience
L'Âne
L'Attente
L'Aventure de Walter Schnaffs
L'Enfant
L'Homme-fille
L'Odyssée d'une fille
L'Orphelin
La Confession
La Confession de Théodule Sabot
La Farce
La Fenêtre
La Ficelle
La Main
La Martine
La Mère aux monstres
La Moustache
La Reine Hortense
La Serre
La Toux
Le Cas de Mme Luneau
Le Condamné à mort
Le Mal d'André
Le Modèle
Le Pain maudit
Le Père
Le Père Judas
Le Père Milon
Le Petit
Le Remplaçant
Le Vengeur
Les Bijoux
Les Caresses
Les Sabots
Lui?
M. Jocaste
Mademoiselle Cocotte
Miss Harriet
Mon oncle Jules
Première neige
Regret
Réveil
Saint-Antoine
Tombouctou
Un coup d'état
Un duel
Un sage
Une soirée
Une surprise
Une vendetta
Adieu
Berthe
Bombard
Coco
Châli
Découverte
Garçon, un bock !...
Idylle
L'Abandonné
L'Aveu
L'Héritage
L'Horrible
La Chambre 11
La Chevelure
La Confession
La Dot
La Mère Sauvage
La Parure
La Patronne
La Peur
Le Baptême
Le Bonheur
Le Garde
Le Gueux
Le Lit 29
Le Parapluie
Le Protecteur
Le Retour
Le Tic
Le Vieux
Lettre trouvée sur un noyé
Les Idées du colonel
Les Sœurs Rondoli
Mohammed-Fripouille
Misti
Notes d'un voyageur
Promenade
Rencontre
Rose
Solitude
Souvenirs
Tribunaux rustiques
Un fou ?
Un lâche
Une vente
Vains Conseils
Yvette
À vendre
Blanc et Bleu
Ça ira
En wagon
Fini
Imprudence
La Bête à Maît' Belhomme
La Confidence
Le Baptême (1885)
Le Moyen de Roger
Le Père Mongilet
L'Épingle
Les Bécasses
Lettre d'un fou
L'Inconnue
Mes vingt-cinq jours
Monsieur Parent
Nos Anglais
Petit Soldat
Sauvée
Toine
Un échec
Un fou
Une lettre
Amour
Au bois
Clochette
Cri d'alarme
Jour de fête
Julie Romain
La Question du latin
L'Auberge
L'Épave
L'Ermite
Le Diable
Le Fermier
Le Père Amable
Le Signe
Le Trou
Madame Parisse
Mademoiselle Perle
Misère humaine
Rosalie Prudent
Sur les chats
Un cas de divorce
Une famille
Voyage de santé
Comment on cause
Duchoux
Étrennes
L'Assassin
L'Homme de Mars
L'Ordonnance
La Baronne
La Morte La Nuit
La Porte Le Horla
Le Lapin
Le Père
Le Rosier de Madame Husson
Le Vagabond
Le Voyage du Horla
Les Rois
Madame Hermet
Moiron
Divorce
L'Infirme
Le Noyé
Les Épingles
Les 25 Francs de la supérieure
Nos lettres
Un portrait
Alexandre
Allouma
Boitelle
Hautot père et fils
L'Endormeuse
L'Épreuve
L'Ordonnance
La Main gauche
Le Masque
Le Port
Le Rendez-vous
Un soir
Le Champ d'oliviers
L'Inutile Beauté
Mouche
Qui sait ?
Après
Le Colporteur
Le Docteur Héraclius Gloss
Les Tombales
O terror da loucura
Uma coisa muito interessante em Maupassant é que contos como Le Horla e Qui sait? descrevem fenômenos aparentemente sobrenaturais mas, no entanto, muita gente vem os tratando implicitamente como sintomas das mentes perturbadas dos protagonistas; Maupassant foi fascinado pela disciplina emergente da psiquiatria, e participava assiduamente das palestras públicas de Jean-Martin Charcot entre 1885 e 1886.
Há também uma forte tendência do perturbado e perturbador flanêur evidente em muitas de suas histórias, como no belíssimo La Nuit. O que direi a seguir é uma observação pessoal que fiz e não sei se ela tem quaisquer fundamentos lógicos além de meu delírio e necessidade de identificação com Maupassant, portanto peço que você, leitor, diga em qual aspecto concorda ou discorda do meu ponto.
Antes de mais nada, para quem não sabe, o flâneur é ser que observa o mundo que o cerca de maneira real e descritiva, levando a vida para cada lugar que vê. O flâneur descreve as cidades, as ruas, os becos, o externo. Desvincula-se do particular, recrimina o privado, de forma a ver a rua como lar, refúgio e abrigo. Este sentimento flaneuriano reflete a necessidade de segurança do indivíduo, a necessidade de identificação dele para com a sociedade. A rua é seu lar, seu mundo. Ali nada é estranho ou prejudicial. Na rua se sente confortável e protegido. O flâneur do século XIX representou a angústia da Revolução Industrial.
Creio que o narrador de La Nuit é um flanêur com gosto especificamente para a noite, e heroicamente é tragado por ela no final. Trata-se da narração de uma perambulação noturna por Paris, que vai da exaltação ao pesadelo. Pouco a pouco a cidade se esvazia- luzes e cores, sinais identificadores da
noite, apagam-se. A noite torna-se ausência de vida, escuridão absoluta, um buraco negro, conduzindo
o narrador-herói à afasia e ao apagamento. Inicialmente, na abertura, temos “a narrativa passional da noite”, figura do amor e do desejo de amar, que gradativamente forma um verdadeiro sentimento passional, levando o protagonista à estranha condução do conto. Logo ele está a observar mundos reais ou imaginários? A viagem na verdade é uma aliteração de seu interior? O andarilho está morto ou vivo, afinal?! Chega a ser opressor e claustrofóbico, e é ao nos passar tal sentimento instigante que Maupassant perturba-nos como o genial escritor fantástico que é, sem fazer uso de quaisquer elementos apelativos.
Como disse o amigo Luiz Riesemberg, os contos fantásticos de Guy de Maupassant obviamente não contêm cenas sangrentas de demônios arrancando as vísceras das vítimas e coisas do tipo. Trata-se de literatura de classe, de alta qualidade, que pode até não ter nada de sobrenatural conforme a interpretação do leitor, mas que fará até mesmo o mais cético ficar em dúvida e (por que não?), sentir calafrios pela espinha.
Conheça agora!
Trago ao visitante o endereço dos maravilhosos sites Contos do Covil e Garganta da Serpente, onde você pode ler muito mais não apenas de Maupassant também de outros magníficos autores do extraordinário. Abaixo, dois contos selecionados com muito zelo com o intuito de introduzi-lo à insanidade de Guy:
Depois de jantarmos, retornamos ao convés do navio. Diante de nós, a superfície lisa do Mediterrâneo refletia uma lua tranqüila. O enorme navio sulcava as águas sob um céu semeado de estrelas, e a esteira branca que deixava para trás brincava em espumas, parecendo retorcer-se em claridades tão buliçosas, que se poderia dizer que a luz da lua estava fervendo.
Seis ou sete homens permanecíamos ali, em silenciosa admiração, enquanto viajávamos para a África distante. O capitão retomou a conversa que havíamos tido durante o jantar:
— Sim, naquele dia eu tive medo. Meu navio permaneceu seis horas açoitado pelas ondas, com um penhasco encravado no ventre. Por sorte, à noite passou um navio mercante inglês, que nos viu e nos recolheu.
Então um dos presentes resolveu contestar a expressão usada pelo capitão. Era um homem alto, de cara bronzeada pelo sol, com aspecto grave; um desses homens que à primeira vista nos dão a impressão de haver percorrido vastos países desconhecidos em meio a incessantes perigos, e cujo olhar sereno parecia guardar, na sua profundidade, algo das estranhas paisagens que vira; um desses homens que adivinhamos dotado de têmpera extraordinária.
— Capitão, o Sr. diz que teve medo, mas não o creio. O Sr. parece enganar-se sobre a palavra e sobre a sensação que teve. Um homem enérgico como o senhor nunca sente medo diante do perigo. Sente emoção, nervosismo, ansiedade, mas medo é outra coisa.
— Discordo! Asseguro-vos que tive medo!
— Permita-me que lhe explique. Até os homens mais intrépidos podem ter medo. Mas o medo é algo espantoso, uma sensação atroz, como uma desintegração da alma, um espasmo horrível do pensamento e do coração, cuja simples recordação dá estremecimentos de angústia. Mas quando se é valente, isso não ocorre nem diante de uma batalha, nem diante da morte inevitável nem diante de nenhuma das formas conhecidas do perigo. Acontece em certas circunstâncias anormais, sob certas influências misteriosas e diante de riscos indefinidos. O verdadeiro medo é como uma reminiscência dos fantásticos terrores primitivos. Um homem que acredita em fantasmas, e que imagina ver um espectro na noite, deve experimentar o medo em todo seu espantoso horror.
Eu descobri o que de fato é o medo há uns dez anos, em pleno dia. E pude experimentá-lo também no último inverno, numa noite de dezembro. Na verdade, passei já por muitas situações, muitos reveses, muitas aventuras que pareciam mortais: em certa ocasião, uns ladrões me deixaram como morto; na América, fui condenado à forca por motivo de rebelião; na China, fui jogado ao mar, da proa de um navio. Cada vez que me julguei perdido, tomei minhas decisões imediatamente, sem vacilar, e até mesmo sem pensar. Mas isso não é o medo.
Observem, senhores, que entre os orientais a vida não conta para nada. Logo se resignam. As noites são claras, órfãs das sombrias inquietudes que atormentam os cérebros nos países frios. No Oriente pode-se conhecer o pânico, mas se ignora o medo. Vou narrar-lhes o que me aconteceu na África.
Percorria eu as grande planícies ao sul de Ouargla. É um dos mais estranhos países do mundo. Os senhores conhecem a areia fina, a areia lisa das intermináveis praias do oceano. Imaginem agora o próprio oceano convertido em areia, em meio a um furacão. Imaginem uma tempestade silenciosa das ondas imóveis de pó amarelo. Essas ondas desiguais são altas como montanhas, encrespadas como torrentes desencadeadas, mas maiores ainda, e estriadas como a ágata. Sobre esse mar furioso, mudo e sem movimento, o sol devorador do Sul lança sua chama implacável e direta. Tem-se que subir nessas ondas de cinza dourada, subir mais uma vez, mais outra, subir sem cessar, sem descanso e sem proteção. Os animais se atolam até os joelhos, e resvalam ao descer pela outra vertente das surpreendentes colinas.
Éramos dois amigos, escoltados por oito spahis seguidos de quatro camelos com seus cameleiros. Íamos por aquele deserto ardente sem falar, assolados pelo calor, pelo cansaço e pela sede. Subitamente um dos homens deu um grito, e todos paramos e permanecemos imóveis, surpreendidos por um inexplicável fenômeno que os viajantes dessas regiões perdidas conhecem bem. Em algum lugar, perto de nós, numa direção indeterminada, soava um misterioso tambor, o misterioso tambor das dunas. Soava claramente, ora mais vibrante ora menos, cessando e logo recomeçando seu som fantástico. Os árabes, espantados, olhavam-se uns aos outros. Um deles disse:
— A morte vem para cima de nós.
De repente meu companheiro, meu amigo quase como um irmão, caiu do cavalo, de bruços, mortalmente atingido pela insolação. Durante duas horas, enquanto eu procurava em vão salvá-lo, aquele tambor, sempre impossível de localizar, me aturdia os ouvidos com seu ruído monótono, intermitente, inexplicável. Então senti que o medo, o verdadeiro medo, o horrível medo, me penetrava até à medula dos ossos, diante daquele cadáver querido, naquela depressão vergastada pelo sol entre quatro montes de areia, enquanto o eco desconhecido nos lançava, a duzentas léguas do povoado francês mais próximo, o dobre rápido de um inatingível tambor. Naquele dia eu compreendi o que é ter medo. Mas houve uma outra vez em que compreendi melhor ainda…
— Perdão, senhor, mas o que era esse tambor? — interrompeu o capitão.
— Não sei. Ninguém sabe. Os oficiais que depararam com esse surpreendente ruído geralmente o atribuem ao eco aumentado, multiplicado, desmesuradamente insuflado pelas ondulações das dunas, de um granizo de areia que o vento lança contra uma mata de ervas secas, pois já se notou que o fenômeno sempre se produz nas proximidades de pequenas plantas queimadas pelo sol, duras como o pergaminho. Segundo essa teoria, aquele tambor nada mais seria do que uma espécie de reflexo ampliado desse som. Mas eu só vim a saber disso mais tarde.
Agora vou lhes contar minha segunda sensação de medo. Aconteceu no inverno passado, num bosque do Noroeste da França. O céu estava tão sombrio naquele dia, que a noite caiu duas horas mais cedo. Era meu guia um camponês, que caminhava ao meu lado por uma trilha estreita numa floresta de abetos. O vento arrancava dessas árvores uma espécie de alarido. Por entre as copas das árvores eu via as nuvens que corriam, como que fugindo de um cataclismo. Às vezes, ante uma forte lufada de vento, todo o bosque se inclinava no mesmo sentido, com um gemido de sofrimento, e o frio me invadia, apesar do meu passo rápido e da minha grossa roupa de lã.
Tínhamos que chegar à casa de um guarda florestal, para jantar e dormir. Não estava muito distante, e eu me encontrava ali como caçador. Meu guia às vezes levantava os olhos e murmurava: “Que tempo triste!” Falou-me sobre as pessoas para cuja casa nos dirigíamos. O pai havia matado um caçador furtivo, dois anos antes, e desde então andava preocupado, como que atormentado por uma lembrança. Seus filhos, já casados, moravam com ele.
A escuridão era profunda, e eu não via nada ao redor de mim. As ramagens de todas as árvores, ao agitar-se, enchiam a noite de um rumor incessante. Afinal vi uma luz, e meu guia chamou a uma porta. Ouvimos gritos de mulheres lá dentro. Logo depois, uma voz de homem, como que estrangulada, perguntou: “Quem está aí?” Meu guia se identificou, a porta se abriu e entramos.
A cena que vimos é impossível de esquecer. Um homem velho, de cabelos brancos e com olhar arregalado e fixo, como de louco, nos aguardava de pé no meio da cozinha, tendo na mão uma espingarda carregada. Dois rapazes com pedaços de pau guardavam a porta. Na obscuridade, percebemos duas mulheres ajoelhadas, com os rostos voltados para a parede. Identificamo-nos, explicamos o motivo de nossa presença ali, e então o velho largou a arma e deu ordens para que nos preparassem acomodações. As duas mulheres continuavam imóveis, então ele me explicou: “Há exatamente dois anos, numa noite como esta, eu matei um homem. Quando se completou um ano, ele veio chamar-me, e esta noite eu estou certo de que voltará novamente. Por isso estamos todos intranqüilos”.
Procurei tranqüilizá-los o melhor que pude, mas intimamente estava satisfeito por ter chegado exatamente naquela noite e presenciar aquele espetáculo de terror supersticioso. Contei algumas histórias, e acabei por acalmá-los quase por completo.
Perto da lareira, um cachorro velho e quase cego — um desses cães que nos lembram alguma pessoa conhecida — dormia com o focinho entre as patas. Fora, a tormenta açoitava a choupana. Por uma estreita vidraça eu via passar, projetadas por grandes relâmpagos, as sombras de árvores agitadas pelo vento. Apesar dos meus esforços, aquela gente estava dominada por um terror profundo. Cada vez que eu parava de falar, todos os ouvidos estavam atentos ao menor ruído. Cansado desses temores imbecis, eu já ia recolher-me quando o velho pulou da cadeira e pegou de novo a espingarda, balbuciando com voz trêmula: “Aí está! Aí está! Já o estou ouvindo!”
As duas mulheres voltaram a cair de joelhos, cobrindo os rostos, e os filhos pegaram de novo os seus paus. Já ia eu tentar novamente tranqüilizá-los, quando o cachorro despertou bruscamente, levantou a cabeça, esticou o pescoço, olhando para a lareira com seu olhar quase apagado, e lançou um desses ganidos lúgubres, que fazem estremecer os caminhantes quando cruzam de noite locais ermos. Todos os olhos se voltaram para o animal, que permanecia agora imóvel sobre as patas, como obcecado por uma visão. O cão se pôs a ganir frente a algo invisível, desconhecido, espantoso sem dúvida, pois todo seu pelo estava eriçado. Lívido, o guarda gritou: “Ele o está farejando! Está farejando! Ele estava exatamente aí, quando o matei!”
As mulheres, como loucas, fizeram coro aos ganidos do cachorro. Um grande calafrio me percorreu a espinha. A visão do animal naquele lugar, naquela hora, em meio a pessoas apavoradas, era algo horrível. Durante uma meia hora o cão ganiu sem mover-se. Um medo espantoso me ia penetrando. Medo de quê? Lá sei eu. Era medo, pura e simplesmente.
Permanecemos imóveis, lívidos, à espera de um acontecimento horrendo, com o ouvido atento, o coração agitado, transtornados ao menor ruído. O cachorro se pôs a dar voltas ao redor da cozinha, farejando as paredes, sem cessar de gemer. O animal nos punha loucos. Então o meu guia se lançou sobre ele, numa espécie de paroxismo de terror furioso, agarrou-o, abriu uma porta de trás, que dava para uma espécie de cercado, e o lançou para fora da casa.
O cachorro se calou logo, e permanecemos algum tempo envoltos num silêncio ainda mais terrível. De repente, todos tivemos uma espécie de sobressalto: algo deslizava contra a parede externa, em direção ao bosque. Depois passou junto à porta, que pareceu apalpar com mãos trêmulas. Novo silêncio durante uns dois minutos, que nos deixou aterrorizados. Depois voltou, roçando sempre a parede, como uma criança com suas unhas. Subitamente apareceu junto à vidraça uma cabeça branca, com dois olhos luminosos como os das feras, e emitiu um gemido — um murmúrio como de quem se lamenta.
Nesse momento se ouviu um ruído formidável. O velho havia disparado sua arma, e em seguida os filhos se precipitaram para a vidraça, cobrindo-a com o tampo de uma grande mesa que reviraram. Com o estrépito do inesperado disparo, senti tal angústia no coração, na alma e no corpo, que me imaginei prestes a perder os sentidos, disposto a morrer de medo. Continuamos ali até o amanhecer, incapazes de mover-nos, de dizer uma palavra, crispados, desvairados. Ninguém se atreveu a abrir a porta antes de entrever alguma claridade fora, pelas frestas das madeiras.
Ao lado do muro, junto à porta, jazia o corpo do velho cachorro, com o focinho desfeito por uma bala. Havia saído do cercado, e procurara abrir alguma passagem junto à porta.
Naquela noite eu não corri nenhum perigo. Mas preferiria voltar a enfrentar todos os riscos mais terríveis que já enfrentei, para não ter de viver aquele único minuto em que o tiro foi disparado na cabeça que surgiu na vidraça.
Eu amo a noite com paixão. Amo como se ama o seu país ou sua amante, um amor instintivo, profundo, invencível. Eu a amo com todos os meus sentidos, com meus olhos que veem, com o meu nariz que respira, com os meus ouvidos que escutam o silêncio e as trevas que minha carne acaricia. As cotovias cantam ao sol, no céu azul, com ar quente, na suave brisa das manhãs de luz. A coruja voa durante a noite neste mesmo lugar, o negro que passa através do espaço escuro e encantador, embriagado pela imensidão sombria ela pia de forma vibrante e sinistra.
Durante a claridade do dia fico cansado, entediado. As manhãs são duras e barulhentas. Me levanto com dificuldades, visto-me devagar, saio todo molenga, pois cada passo, cada movimento, cada gesto, cada palavra, cada pensamento me cansa como se levantasse um peso opressor.
Porém quando o sol se põe, surge-me uma alegria confusa, uma satisfação que anima todo meu corpo. Eu desperto, fico motivado. Quando as sombras surgem sinto-me diferente, mais jovem, mais forte, mais alerta, mais feliz. Eu contemplo a penumbra ficar cada vez mais densa, a grande sombra cair suavemente do céu: ela afoga a cidade, como uma onda fugaz e incompreensível, ela esconde, apaga, destrói a cor, deforma, oculta as pessoas, casas, e os monumentos com seu toque imperceptível.
Então, eu quero gritar de prazer como as corujas, correr sobre os telhados como os gatos, explosões dilatam meu corpo, um desejo de amar incontrolável se acende nas minhas veias. Eu então saio, seguindo sem rumo às vezes, nos escuros subúrbios, ou então no bosque perto de Paris, onde eu ouço meus noturnos irmãos animais vagando e caçando meus semelhantes.
Aquilo que você ama com violência sempre acaba te matando. Mas como explicar isto que está acontecendo comigo? Ou como posso explicar aquilo que vivo? Eu não sei bem, já não sei mais, só sei que é real. Só isso! Aconteceu ontem; foi ontem? Sim, provavelmente, talvez tenha ocorrido anteontem, ou dias atrás, quem sabe num outro mês, ou alguns anos antes... Não sei. Mas deve ter sido ontem porque o sol não voltou a aparecer e o dia nunca mais raiou. Quanto dura uma noite? Qual é sua intensidade? Alguém saberá dizer? Alguém conhece?
Foi então ontem, eu saí como faço todas as noites depois do jantar. O tempo estava muito bonito, muito suave, muito quente. Segui até os Bulevares olhando, sobre a minha cabeça, um rio preto cheio de estrelas correndo no céu além dos telhados das ruas, como se as telhas das casas demarcassem as margens daquele rio torrencial de estrelas. Tudo estava claro, como um ar leve, dês da luz dos planetas até as lâmpadas a gás. Então, muitas luzes brilhavam lá em cima e na cidade que parecia um foco de luz na escuridão. As noites são brilhantes e felizes, como os grandes dias de sol.
No Bulevar os cafés eram sorvidos por pessoas noturnas, eles riam, pediam mais café e bebiam. Entrei no teatro, por alguns instantes, mas em qual teatro? Não sei. Estava tão claro que me desanimou então eu fugi com o coração ofuscado pelo choque de luz douradas das sacadas, pelo lustres de cristais cintilantes falsos e enormes, pela cortina de fogo da ribalta, pela melancolia da claridade falsa e crua. Cheguei ao Champs-Elysees, onde os cafés-concertos pareciam incêndios entre as folhas.
As castanheiras friccionavam uma luz amarela, elas pareciam pintada como árvores fosforescentes. As luzes elétricas assemelhavam-se as luas brilhantes e pálidas, eram ovos de lua caídas do céu, pérolas monstruosas, vivas, lívidas com seus bicos de gás encarnado, misteriosa e real, com gás sujo e desagradável, como guirlandas de vidros coloridos. Parei em baixo do Arco do Triunfo e olhei para a avenida, a longa e maravilhosa avenida estrelada, seguindo até Paris entre duas linhas de fogo, e vários Sois! Os astros lá em cima, estranhos astros jogados aleatoriamente na vastidão desenhando figuras adversas, formatos que nos fazem sonhar, que nos fazem pensar tanto. Entrei no Bois de Boulogne e fiquei lá demoradamente, por muito tempo. Um tremor apoderou-se de mim, uma emoção estranha, inesperada, poderosa, era alguma exaltação do meu cogitar que beirava a insanidade.
Andei um longo, longo tempo. Depois voltei.
Que horas eram quando tornei a passar sob o Arco do Triunfo? Também não sabia. A cidade dormia, em nuvens, grandes nuvens escuras que se alastravam lentamente pelo céu. Pela primeira vez eu senti que algo singular, novo, iria acontecer. Tive a impressão que estava frio, um ar mais denso cresceu, naquela noite, minha noite mais amada, meu coração ficou pesado. A avenida estava deserta agora. Apenas dois policiais caminhavam na direção dos táxis. Na rua, mal iluminada pelos lampiões a gás que pareciam apagar, seguiam uma fila de carroças de legumes indo para Les Halles.
Elas eram puxadas lentamente, carregadas com cenouras, nabos e repolhos. Os cocheiros dormiam, invisíveis. Os cavalos andavam no mesmo ritmo, seguindo a carroça da frente, em silêncio pela calçada de madeira. Diante das luzes da calçada eram iluminadas de vermelho as cenouras, de branco os nabos, de verde claro os repolhos. Carruagens que passavam uma após a outra, com mercadorias brilhantes, uma tinha um rubro flamejante como fogo, cintilante semelhante prata e a seguinte esverdeada igual à esmeralda. Segui elas, quando virei na rua Royale e voltei para os Bulevares. Ninguém, nenhum café iluminado, apenas alguns atrasados marchando tardiamente. Eu nunca tinha visto Paris tão morta como um deserto. Peguei meu relógio. Eram duas horas.
Uma força me empurrava, era uma necessidade de andar. Então eu fui para a Bastilha. Lá percebi que eu nunca tinha visto uma noite tão escura assim, porque não conseguia distinguir a Colonne de Juillet, cuja engenharia de ouro estava perdida na escuridão impenetrável. Um cobertor de nuvens, grossas como a imensidão, afogando as estrelas e parecia descer à Terra para destruí-la.
Voltei. Não havia ninguém ao meu redor. Porém, na praça Du Chateau d'Eau, um bêbado quase me bateu e depois desapareceu. Eu ouvi por algum tempo seus passos sonoros e irregulares. Eu continuei seguindo. Próximo do Faubourg Montmartre passou um táxi descendo na direção do Sena. Eu chamei. O motorista não respondeu. Uma mulher estava perambulando perto da Rue Drouot:
- Cavalheiro, escute.
Apertei meus passos para evitar a sua mão estendida. Daí então, mais nada. Na frente do Vaudeville um catador de trecos vasculhava a sarjeta. Sua pequena lanterna iluminava fracamente o chão.
- Que horas são, amigo? perguntei.
- Como vou saber, não tenho relógio!- ele falou entre os dentes.
Foi então que eu percebi, de repente, que as luminárias de gás estavam desligadas. Sei que nesta estação do ano elas são apagadas mais cedo, antes de amanhecer para economizar energia. Porém o dia ainda estava longe, muito longe de raiar.
- Vamos para Les Halles, pensei, pelo menos lá irei encontrar vida.
Segui meu caminho, mas eu não conseguia ver nada para me orientar. Caminhei lentamente, como se estivesse numa floresta densa, tateando as ruas para desvendá-las. Próximo do Credit Lyonnais um cão rosnou. Entrei na Rue de Grammont e me perdi, vaguei então sem rumo, quando reconheci a Bolsa pelas grades de ferro que a rodeavam.
Toda Paris dormia, um sono profundo, assustador. Ao longe, no entanto, vi novamente um táxi, talvez tenha sido o mesmo que passou por mim mais cedo. Tentei alcançá-lo, seguindo o som das suas rodas, pelas ruas desertas e enegrecidas, negra, negra como a morte. Eu o perdi novamente. Onde eu estava? Quem seria tão tolo para desligar o gás tão cedo! Ninguém mais vi na cidade, nenhum andarilho atrasado, nenhum vagabundo, nenhum gato miando para sua felina. Nada.
Onde estavam os policiais? Então eu disse: "Vou gritar, assim eles virão." Me lamentei. Porque ninguém respondeu. Berrei mais alto. Minha voz se propagou no espaço, sem eco, diminuindo abafada, esmagada pela noite, pela noite impenetrável.
- Socorro! Socorro! – Gritei.
Meu apelo desesperado ficou sem resposta. A que horas foi isso? Tentei olhar para meu relógio, porém eu não tinha fósforos. Eu ouvia o tique-taque da pequena caixa de engrenagens mecânica com uma bizarra e desconhecida alegria. Ele parecia viver. Eu não me sentia tão sozinho. Que mistério! Eu voltei a andar como um cego, sentindo as paredes com minha bengala, onde todo momento voltava meus olhos para o céu, esperando o dia raiar e finalmente a luz aparecer, mas o espaço estava soturnamente revolto, todo negro, a escuridão tinha tamanha profundidade que não havia mais cidade.
Que horas poderiam ser? Eu andava, parecia aquele momento uma eternidade, porque minhas pernas involuntariamente curvavam-se abaixo de mim, meu peito arfava e eu sofri terrivelmente com fome. Decidi tocar a campainha da primeira casa que eu esbarrasse. Eu puxei a maçaneta de bronze da porta, toquei o sino da campainha, ele soava estranhamente como se estivesse vibrando sozinho na casa. Eu esperei sem respostas, ninguém abriu a porta. Toquei novamente, esperei mais uma vez. Nada!
Eu sentia medo! Corri para a próxima casa, e por vinte vezes naquela calçada eu fiz soar a campainha num corredor escuro onde deveria estar dormindo algum porteiro. Mas ele não acordou, então eu foi mais longe, puxando com toda a minha insistência os sinos, chutando com meus pés, batia minha bengala nas portas, no entanto permaneceram fechadas.
De repente percebi que estava chegando ao Halles. Os mercados estavam desertos, sem murmúrio, sem um único movimento, sem uma carroça, sem uma alma sequer, na havia nenhum banca de legumes ou flores. Tudo ali estava vazio, imóvel, abandonado, morto!
Um pânico se apoderou de mim, algo terrível. O que estava acontecendo? Oh meu Deus! O que estava acontecendo?
Eu parti. Mas que hora? A hora! Quem me indicaria o tempo? Nenhum relógio, nenhuma badalada soou nos sinos dos monumentos.
- Vou abrir o vidro do meu relógio e sentir os ponteiros com os dedos. pensei. Peguei meu relógio... ele não trabalhava mais... estava parado. Nada! Nada mais, além de um frio na cidade, eu não percebia nenhum chiado, nenhum ruído se propagava pelo ar. Nada! Nada mesmo! Nenhum único som das rodas de um distante carro. Absolutamente nada!
Eu estava no cais, e uma brisa gélida saia do rio. O Sena corria ainda? Eu agora queria saber, encontrei as escadas, desci... Eu não conseguia ouvir o borbulhar do fluxo das águas nas colunas da ponte... desci mais um pouco... senti a areia... depois a lama... então a água... Mergulhei meu braço... corria... sim o rio ainda corria... Frio... Frio... Frio... quase congelado... quase seco... quase morto. Eu senti que não conseguiria ter forças para recuar... e que o rio iria desfalecer ali... Eu também, de fome, de cansaço, de frio.
Hoje inauguramos uma nova série de posts quinzenais que abordará algumas personalidades do mundo sombrio. A primeira pessoa que trataremos será o celebre Edgar Allan Poe, autor cujo qual todo mundo já ouviu falar, mas acho incrivelmente bizarro o número de pessoas que o têm na lista de "livros a ler" e nada sabem do homem, sequer leram uma obra dele. Ele escrevia poemas e contos e cá entre nós, consegue pensar em algo mais curto e prático de ler do que isso (além de haikais¹)? Pois eis o motivo de eu sugerir que ignore a ordem de vossa lista de "livros a ler" e deguste de pelo menos um maldito conto do Poe agora mesmo, se de fato ele te interessa, pois em curtíssimas obras esse mestre expressa o horror em belas e reflexivas linhas de puro deleite. Não gosta de ler no computador? Pois está lendo agora, meu post, e os contos de Poe não são muito maiores que este post.
Edgar Allan Poe
Edgar Allan Poe (Boston, EUA, 19/01/1809 - Baltimore, 7/10/1849) foi um autor, editor e crítico literário bastante exigente, e o primeiro escritor americano conhecido a tentar se sustentar exclusivamente através da escrita, resultando em uma vida e carreira financeiramente difícil.
Segundo filho de David Poe e Elizabeth Arnold, ambos atores, Edgar Poe ficou órfão ainda criança e foi adotado por um casal rico de Richmond, Virgínia, Jonh Allan e Frances Kelling Allan. Isso lhe permitiu ter uma educação de qualidade, bem como fazer uma longa viagem pela Inglaterra, Escócia e Irlanda com os pais adotivos. Regressou aos Estados Unidos em 1822 e continuou seus estudos sob a orientação dos melhores professores da época. Dois anos depois, entrou para a Universidade de Charlotesville, distinguindo-se tanto pela inteligência quanto pelo temperamento inquieto, que posteriormente o levou a ser expulso da escola.
A seguir houve um período ainda pouco esclarecido na vida de Poe, no qual se registram viagens fora dos Estados Unidos.
Retornou a seu país em 1829 e manifestou desejo de seguir a carreira militar. Foi admitido na célebre Academia de West Point, mas acabou expulso poucos meses depois por indisciplina.
Com a morte da mãe adotiva, John Allan voltou a casar-se, com uma mulher muito jovem que lhe deu dois filhos. Isso impediu que Poe se tornasse herdeiro da fortuna paterna e ele se afastou da casa do pai adotivo, deixando Richmond. Após um período de relativa dificuldade, conheceu uma certa prosperidade ao vencer simultaneamente os concursos de conto e poesia promovidos pela revista Southern Literary Messager. O fundador da publicação, Thomas White, convidou-o a dirigir a revista que rapidamente se impôs ao público. Durante dois anos, Poe esteve a frente do periódico, onde pôde exibir seu talento que se manifestava num estilo novo, no conto e na poesia, bem como pelos artigos de crítica literária que revelavam seu rigor e sensibilidade estética.
Escritor bem-sucedido, Poe casou-se com Virginia Clemm. Entretanto, ao fim de dois anos, White cortou relações com o escritor, que já desenvolvera a doença do alcoolismo. Poe passou a produzir como "free-lancer", em grande quantidade, mas sem ganhar o suficiente para manter uma vida digna e saudável, o que o levou a afundar-se ainda mais na bebida.
A morte de sua mulher por conta da tuberculose agravou o problema. O escritor passou a beber cada vez mais e já sofria os primeiros ataques de delirium tremens (os sintomas incluem tremores, insônia, ansiedade e outros problemas físicos e mentais). Numa viagem a Nova York, para tratar de negócios, parou em Baltimore e hospedou-se numa taberna onde se distraiu durante horas bebendo. Era a noite de 6 de outubro de 1849. O escritor morreu na madrugada do dia 7, aos 40 anos.
Morte misteriosa
Cercada de mistério, sua causa ainda é muito discutida. Quatro dias antes de falecer, Poe foi encontrado nas ruas de Baltimore em um estado delirante. Não existem provas fiáveis sobre seu paradeiro até que, uma semana depois, em 3 de outubro, foi encontrado delirando nas ruas de Baltimore, em frente à Ryan's Tavern. Um impressor chamado Joseph W. Walker enviou uma carta para o Dr. Joseph E. Snodgrass, conhecido de Poe, pedindo ajuda:
Estimado senhor - Há um cavalheiro, muito mal vestido, no 4º distrito de Ryan, que se chama Edgar A. Poe e que aparenta estar muito angustiado e ele que ele é conhecido seu, e eu lhe asseguro, ele está necessitando de assistência imediata. Apressadamente, Jos. W. Walker2
Depois de ler a carta, Snodgrass se apressou em se dirigir à taverna, cruzando a cidade sob uma chuva torrencial. Posteriormente ele declarou que Poe se encontrava "em um estado de intoxicação bestial". Em sua declaração, Snodgrass descreveu o estado de Poe como "repulsivo", relatando que tinha seu cabelo despenteado, gasto, sua cara sem lavar e olhos "vazios e opacos". Sua roupa consistia em uma camisa suja sem terno e sapatos não lustrados, estava gasta, e não eram do seu tamanho. Snodgrass decidiu levá-lo ao hospital da Universidade Washington, onde foi atendido e tratado pelo médico de plantão, o Dr. John Joseph Moran. Moran dá uma descrição detalhada sobre a aparência de Poe naquele dia, que concorda com a dada por Snodgrass: "uma velha e manchada jaqueta, calças em um estado similar, um par de sapatos gastos com as solas gastas, e um velho chapéu de palha". Poe nunca esteve suficientemente coerente para explicar como chegara a se encontrar em situação tão desesperada, e se crê que as roupas que vestia não eram suas, especialmente porque ele não estava acostumado a usar vestimentas gastas.
Ao escritor foram negadas visitas e ele foi confinado em uma habitação similar a uma prisão, com janelas com barras em uma seção do edifício reservada para alcoólatras. Diz-se que, na sua agonia, Poe chamou repetidas vezes um tal "Reynolds" na noite antes de sua morte, mas ninguém foi capaz de identificar a pessoa à qual ele se referia.
As teorias sobre as causas da morte do escritor incluem suicídio, assassinato, cólera, raiva, sífilis e ter sido capturado por agentes eleitorais que o teriam forçado a beber para fazê-lo votar e abandonaram-no, já em estado de embriaguez, à sua sorte.
Suas últimas palavras foram: “Está tudo acabado”.
Funeral e enterro
Poe foi enterrado originalmente, sem lápide alguma, nas proximidades da parte de trás da igreja, perto de seu avô. Neilson Poe, primo de Edgar, havia comprado uma lápide de mármore italiano, mas ela foi destruída antes que chegasse à tumba quando um trem descarrilhou e se chocou contra o depósito onde ela estava guardada. Imagino que o autor teria rido da desgraça da situação, se estivesse vivo e radiante para tal, como em meados de 1836...
O funeral de ocorreu em 8 de outubro de 1849, numa segunda-feira, às quatro horas da tarde. Foi uma cerimônia simples à qual compareceram poucas pessoas, e inteira durou somente três minutos. A tarde era fria e úmida. O reverendo Clemm decidiu que não valia a pena pronunciar um sermão devido ao pouco público. Poe foi enterrado em um esquife barato a que faltavam alças. Tinha uma placa e era forrado com pano, com uma almofada para a sua cabeça.
Em 1873, o poeta do sul Paul Hamilton Hayne visitou a tumba e publicou um artigo descrevendo a sua pobre condição do "túmulo" (sim, botei entre aspas, mesmo!), sugerindo um monumento mais apropriado. Muitas pessoas de Baltimore e de todo os Estados Unidos contribuíram. O custo total do monumento, com o emblema, chegou a pouco mais de 1.500 dólares. O lugar original do enterro foi marcado com uma grande lápide doada por Orin C. Painter, mas originalmente, foi colocada em um lugar incorreto. E penso novamente que Poe teria rido...
O mistério das três rosas: Um fato interessantíssimo é que, por cerca de 60 anos, desde 1949, um desconhecido ia ao seu túmulo nesta data religiosamente todos os anos, deixando ali três rosas e uma garrafa de conhaque parcialmente cheia. Mas nos últimos anos o estranho parece ter desaparecido, e a tradição deve ter se perdido. Será que alguém irá retomá-la no futuro?
Obra geral
Suas histórias são repletas de terror e mistério no qual o sobrenatural e a loucura, misturam-se com a realidade através de delírios, doenças, assassinatos e suicídio. Pessoalmente é isso o que amo nesse grande mestre: a capacidade de mesclar a loucura com o paranormal, muitas vezes colocando uma linha tão tênua entre ambas as áreas que nos faz ponderar o que é ou não real, e ainda mais o que há de extraordinário no ordinário e vice-verso.
As obras mais conhecidas de Poe são Góticas. Seus temas mais recorrentes lidam com questões da morte, incluindo sinais físicos dela, os efeitos da decomposição, interesses por pessoas enterradas vivas, a reanimação dos mortos e o luto. Muitas das suas obras são geralmente consideradas partes do gênero do romantismo sombrio, uma reação literária ao transcendentalismo.
Além do horror, Poe também escreveu sátiras e contos de humor. Para efeito cômico, abusava da ironia e a extravagância do ridículo, muitas vezes na tentativa de liberar o leitor da conformidade cultural. De fato, "Metzengerstein", a primeira história que Poe publicou (e sua primeira incursão em terror) foi originalmente concebida como uma paródia satirizando o gênero popular.
Sua escrita reflete suas teorias literárias, que ele apresentou em sua crítica: não gostava de didatilismo e alegoria, pois acreditava que os significados na literatura deveriam ser uma subcorrente sob a superfície. Trabalhos com significados óbvios, ele escreveu, deixam de ser arte. Acreditava que o trabalho de qualidade deveria ser breve e concentrar-se em um efeito específico e único. Para isso, acreditava que o escritor deveria calcular cuidadosamente todos sentimentos e ideias.
· A Dream (1827)
· A Dream Within a Dream (1827)
· Dreams (1827)
· Tamerlane (1827)
· Al Aaraaf (1829)
· Alone (1830)
· To Helen (1831)
· Israfel (1831)
· The City in the Sea (1831)
· To One in Paradise (1834)
· The Conqueror Worm (1837)
· The Narrative of Arthur Gordon Pym (1838)
· Silence (1840)
· A Descent Into the Maelstrom (1841)
· Tell Tale Heart (1843)
· Lenore (1843)
· O Gato Preto (1843)
· Dreamland (1844)
· The Purloined Letter (1844)
· The Divine Right of Kings (1845)
· The Raven (1845)
· The Philosophy of Composition
· Ulalume (1847)
· Eureka (1848)
· Annabel Lee (1849)
· The Bells (1849)
· Eldorado (1849)
· Eulalie (1850)
· The Valley Of The Unrest
· Bridal Ballad
· The Sleeper
· The Coliseum
· Sonnet:To Zante
· To One in Paradise
· The Haunted Palace
· Romance
· FairyLand
· Song
· To F-
· To -
· To F-s S.O-d
· To The River-
· The Lake.To-
· The Bells
· A Valentine
· An Enigma
· To --
· To M.L.S.-
· To My Mother
· For Annie
· The pit and the pendulum (1842)
· William Wilson (1839)
· Berenice (conto)
· Morella (conto)
· The Oblong Box (conto)
· The Man of The Crowd (conto)
· The Assignation (conto)
· The Oval Portrait (conto)
· The King Pest (conto)
· The Gold-Bug (conto)
· Ms.Found In a Bottle (conto)
· The Balloon Hoax (conto)
· Metzengerstein
· Ligeia (conto)
· "Thou Art the Man" (conto)
· The Spectacles (conto)
· The Premature Burial (conto)
· A Tale of the Ragged Mountains (conto)
· The Island of the Fay (conto)
· The Colloquy of Monos and Una (conto)
· The Conversation of Eiros and Charmion (conto)
· A Queda da Casa de Husher (conto) (1839)
· Os Assassinatos da Rua Morgue (conto) (1841)
· A Máscara da Morte Rubra (conto) (1842)
· O Mistério de Marie Rogêt (conto) (1842)
· O Poder das Palavras (conto) (1845)
· O Demônio da Perversidade (conto) (1845)
· The System of Doctor Tarr and Professor Fether (conto) (1845)
· Os Fatos que Envolveram o Caso Mr.Valdemar (conto) (1845)
· A Esfinge (conto) (1846)
· The Cask of Amontillado (conto) (1846)
· The Domain of Arnheim (conto) (1847)
· Mellonta Tauta (conto) (1849)
· Hop-Frog ou Os Oito Orangotangos Acorrentados (conto) (1849)
· Von Kempelen and His Discovery (conto) (1849)
· X-ing a Paragrab (conto) (1849)
· A Cabana de Landor (conto) (1849)
Influência mundial
Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe é considerado por muito o inventor do gênero ficção policial, como podemos claramente perceber ao ler Os assassinatos na Rua Morgue e A carta roubada - especula-se que o herói desses contos, C. Auguste Dupin, foi uma das grandes inspirações do britânico Arthur Conan Doyle ao criar o grande Sherlock Holmes, além de ter influenciado autores como Agatha Christie, G. K. Chesterton, Jorge Luis Borges, e muitosoutros.
Um espírito desequilibrado e uma alma atribulada fizeram Poe levar sempre uma vida de miséria e de desespero, mas senhor, ao mesmo tempo, da maior figura do romantismo americano e o mais universalmente conhecido dos seus escritores. Sua própria vida foi um desses romances vividos que fornecem alta matéria para os romancistas.
Sendo Poe uma importante figura do movimento romântico americano, é de prado encontrarmos na internet fanfics (histórias criadas por fãs baseadas nas já existente) escritas em inglês utilizando-se das obras do autor, pois na sétima ou oitava série (respectivamente 8th e 9th grade) as crianças geralmente têm como trabalho escolar criar obras baseadas em algum escritor nacional romântico. Pessoalmente também mergulhei no universo do terror com o amparo principalmente das obras de Poe, que lia ainda em infância e foi um fator decisivo na minha paixão pela coisa.
Sua obra e vida também foram inspiração para músicos e compositores. O sobrenatural de Poe fascinou compositores eruditos, Debussy compôs uma ópera baseada na Queda da Casa de Usher; Rachmaninoff, utilizou o poema Os Sinos e o transformou em uma sinfonia com coral de mesmo nome; Joseph Holbrooke que era obcecado pelas obras de Poe compôs um poema sinfônico baseado em O Corvo; e tantos outros. Na música popular, Poe também teve e tem uma grande influência. Bob Dylan, Don Dilworth, The Beatles, Lou Reed, Iron Maiden e outros milhares de músicos beberam desse néctar precioso.
A morte de Poe também foi objeto de uma série de obras, tanto fictícias quanto representações de sua biografia. Em 1915 foi lançado o filme The Raven, um cinebiografia retratando os delírios de Poe em seus últimos dias. Em 2002, o romance gráfico The Shadow of Edgar Allan Poe, relata as descobertas de Sterling Tuttle, um fictício entusiasta do autor, ao encontrar um diário que Poe teria escrito em seu leito de morte, detalhando encontros sobrenaturais. A partir daí, Tuttle começa a se questionar se o trabalho do escritor teria sido influenciado por perturbações sobrenaturais ao invés de mentais
Presentinho!
Se você teve coragem de ler este enorme texto e ainda está postergando a leitura de Poe, sugiro que deixe a preguiça de lado e leia ao menos um conto dele, pois convenhamos que meu post ficou maior que muitas obras do mestre! (risos) Na verdade eu pretendia realmente fazer um resumo modesto do Poe, mas obviamente é muito difícil falar de uma figura tão querida em poucas linhas. Poderia escrever uma bíblia sobre ele! Peço perdão pela extensão colossal desta biografia que deveria ser pequena, e como recompensa trago ao visitante o endereço do maravilhoso site Contos do Covil e Garganta da Serpente, onde você pode ler muito mais não apenas do Mr Edgar mas também de outros magníficos autores do extraordinário. Abaixo, dois contos com o intuito de introduzi-lo a este mórbido mundo Poeniano:
Suportei o melhor que pude as injúrias de Fortunato; mas, quando ousou insultar-me, jurei vingança. Vós, que tão bem conheceis a natureza de meu caráter, não havereis de supor, no entanto, que eu tenha proferido qualquer ameaça. No fim, eu seria vingado. Este era um ponto definitivamente assentado, mas a própria decisão com que eu assim decidira excluía qualquer idéia de perigo. Assim devia apenas castigar, mas castigar impunemente. Uma injúria permanece irreparada, quando o castigo alcança aquele que se vinga. Permanece, igualmente, sem reparado, quando o vingador deixa de fazer com que aquele que o ofendeu compreenda que e ele quem se vinga.
É preciso que se saiba que, nem por meio de palavras, nem de qualquer ato, dei a Fortunato motivo para que duvidasse de minha boa vontade. Continuei, como de costume, a sorrir em sua presença, e ele não percebia que o meu sorriso, agora, tinha como origem a idéia da sua imolação.
Esse tal Fortunato tinha um ponto fraco, embora, sob outros aspectos, fosse um homem digno de ser respeitado e, até mesmo, temido. Vangloriava-se sempre de ser entendido em vinhos. Poucos italianos possuem verdadeiro talento para isso. Na maioria das vezes, seu entusiasmo se adapta aquilo que a ocasião e a oportunidade exigem, tendo em vista enganar os milionários ingleses e austríacos. Em pintura e pedras preciosas, Fortunado, como todos os seus compatriotas, era um intrujão; mas, com respeito a vinhos antigos, era sincero. Sob este aspecto, não havia grande diferença entre nós – pois que eu também era hábil conhecedor de vinhos italianos, comprando-os sempre em grande quantidade, sempre que podia. Uma tarde, quase ao anoitecer, em plena loucura do carnaval, encontrei o meu amigo. Acolheu-me com excessiva cordialidade, pois que havia bebido muito. Usava um traje de truão, muito justo e listrado, tendo à cabeça um chapéu cônico, guarnecido de gizos.
Fiquei tão contente de encontrá-lo, que julguei que jamais estreitaria a sua mão como naquele momento.
- Meu caro Fortunato – disse-lhe eu -, foi uma sorte encontrá-lo. Mas, que bom aspecto tem você hoje! Recebi um barril como sendo de Amontillado, mas tenho minhas duvidas.
- Como? – disse ele. – Amontillado? Um barril? Impossível! E em pleno carnaval!
- Tenho minhas dúvidas – repeti – e seria tolo que o pagasse como sendo de Amontillado antes de consultá-lo sobre o assunto. Não conseguia encontrá-lo em parte alguma, e receava perder um bom negócio.
- Amontillado!
- Tenho minhas dúvidas.
- Amontillado!
- E preciso efetuar o pagamento.
- Amontillado!
- Mas, como você esta ocupado, irei à procura de Luchesi. Se existe alguém que conheça o assunto, esse alguém é ele. Ele me dirá …
- Luchesi é incapaz de distinguir entre um Amontillado e um Xerez.
- Não obstante, há alguns imbecis que acham que o paladar de Luchesi pode competir com o seu.
-Vamos, vamos embora.
- Para onde?
- Para as suas adegas.
- Não, meu amigo. Não quero abusar de sua bondade. Penso que você deve ter algum compromisso. Luchesi…
- Não tenho compromisso algum. Vamos.
- Não, meu amigo. Embora você não tenha compromisso algum, vejo que esta com muito frio. E as adegas são insuportavelmente úmidas. Estão recobertas de salitre.
- Apesar de tudo, vamos. Não importa o frio. Amontillado! Você foi enganado. Quanto a Luchesi, não sabe distinguir entre Xerez e Amontillado.
Assim falando, Fortunato tomou-me pelo braço. Pus uma máscara de seda negra e, envolvendo-me bem em meu roquelaire, deixei-me conduzir ao meu palazzo.
Não havia nenhum criado em casa, pois que todos haviam saído para celebrar o carnaval. Eu lhes dissera que não regressaria antes da manhã seguinte, e lhes dera ordens estritas para que não arredassem pé da casa. Essas ordens eram suficientes, eu bem o sabia, para assegurai o seu desaparecimento imediato, tão logo eu lhes voltasse as costas. Tomei duas velas de seus candelabros e, dando uma a Fortunato, conduzi-o, curvado, através de uma seqüência de compartimentos, à passagem abobadada que levava à adega.
Chegamos, por fim, aos últimos degraus e detivemo-nos sobre o solo úmido das catacumbas dos Montresor.
O andar de meu amigo era vacilante e os guizos de seu gorro retiniam a cada um de seus passos.
- E o barril? – perguntou.
- Está mais adiante – respondi. – Mas observe as brancas teias de aranha que brilham nas paredes dessas cavernas.
Voltou-se para mim e olhou-me com suas nubladas pupilas, que destilavam as lágrimas da embriaguez.
- Salitre? – perguntou, por fim.
- Salitre – respondi. – Há quanto tempo você tem essa tosse?
Meu pobre amigo pôs-se a tossir sem cessar e, durante muitos minutos, não lhe foi possível responder.
- Não é nada – disse afinal.
- Vamos – disse-lhe com decisão. – Vamos voltar. Sua saúde é preciosa. Você é rico, respeitado, admirado, amado; você é feliz, como eu também o era. Você é um homem cuja falta será sentida. Quanto a mim, não impor-ta. Vamos embora. Você ficará doente, e não quero arcar com essa responsabilidade. Além disso, posso procurar Luchesi . . .
- Basta – exclamou ele. – Esta tosse não tem importância; não me matará. Não morrerei por causa de uma simples tosse.
-É verdade, é verdade – respondi. – E eu, de fato, não tenho intenção alguma de alarmá-lo sem motivo. Mas você deve tomar precauções. Um gole deste Medoc nos defenderá da umidade.
E, dizendo isto, parti o gargalo de uma garrafa que se achava numa longa
fila de muitas outras iguais, sobre o chão úmido.
- Beba – disse, oferecendo-lhe o vinho.
Levou a garrafa aos lábios, olhando-me de soslaio. Fez uma pausa e saudou-me com familiaridade, enquanto seus guizos soavam.
- Bebo – disse ele – à saúde dos que repousam enterrados, em torno de nós.
- E eu para que você tenha vida longa. Tomou-me de novo o braço e prosseguimos. – Estas cavernas – disse-me – são extensas.
- Os Montresor – respondi – formavam uma família grande e numerosa.
- Esqueci qual o seu brasão.
- Um grande pé de ouro, em campo azul. O pé esmaga uma serpente ameaçadora, cujas presas se acham cravadas no salto.
- E a divisa?
- Nemo me impune lacessit.
- Muito bem! – exclamou.
O vinho brilhava em seus olhos e os guizos retiniam. Minha própria imaginação se animou, devido ao Medoc. Através de paredes de ossos empilhados, entremeados de barris e tonéis, penetramos nos recintos mais profundos das catacumbas. Detive-me de novo e, essa vez, me atrevi a segurar Fortunato pelo braço, acima do cotovelo.
- O salitre! – exclamei. – Veja como aumenta. Prende-se, como musgo, nas abóbadas. Estamos sob o leito do rio. As gotas de umidade filtram-se por entre os ossos. Vamos. Voltemos, antes que seja tarde demais. Sua tosse…
- Não é nada – respondeu ele. – Prossigamos. Mas, antes, tomemos outro gole do Medoc.
Parti o gargalo de uma garrafa de vinho De Grâve a dei-a a Fortunato. Ele a esvaziou de um trago. Seus olhos cintilaram com brilho ardente. Pôs-se a rir e atirou a garrafa para o ar, com gesticulação que não compreendi.
Olhei-o, surpreso. Repetiu o movimento, um movimento grotesco.
- Você não compreende? – perguntou.
- Não, não compreendo – respondi.
- Então é porque você não pertence à irmandade.
- Como?
- Não pertence à maçonaria.
- Sim, sim. Pertenço.
- Você? Impossível! Um maçom?
- Um maçom – respondi.
- Prove-o – disse ele.
- Eis aqui – respondi, tir
ando de debaixo das dobras de meu roquelaire uma colher de pedreiro.
- Você está gracejando! – exclamou recuando alguns passos. – Mas prossigamos: vamos ao Amontillado.
- Está bem – disse eu, guardando outra vez a ferramenta debaixo da capa e oferecendo-lhe o braço. Apoiou-se pesadamente em mim. Continuamos nosso caminho, em busca do Amontillado. Passamos através de uma série de baixas abóbadas, descemos, avançamos ainda, tornamos a descer e chegamos, afinal, a uma profunda cripta, cujo ar, rarefeito, fazia com que nossas velas bruxuleassem, ao invés de arder normalmente.
Na extremidade mais distante da cripta aparecia uma outra, menos espaçosa. Despojos humanos empilhavam-se ao longo de seus muros, até o alto das abóbadas, à maneira das grandes catacumbas de Paris. Três dos lados dessa cripta eram ainda adornados dessa maneira. Do quarto, os ossos haviam sido retirados e jaziam espalhados pelo chão, formando, num dos cantos, um monte de certa altura. Dentro da parede, que, com a remoção dos ossos, ficara exposta, via-se ainda outra cripta ou recinto interior, de uns quatro pés de profundidade, três de largura e seis ou sete de altura. Não parecia haver sido construída para qualquer uso determinado, mas constituir apenas um intervalo entre os dois enormes pilares que sustinham a cúpula das catacumbas, tendo por fundo uma das paredes circundantes de sólido granito.
Foi em vão que Fortunato, erguendo sua vela bruxuleante, procurou divisar a profundidade daquele recinto. A luz, fraca, não nos permitia ver o fundo.
- Continue – disse-lhe eu. – O Amontillado está aí dentro. Quanto a Luchesi. . .
- É um ignorante – interrompeu o meu amigo, enquanto avançava com passo vacilante, seguido imediatamente por mim.
Num momento, chegou ao fundo do nicho e, vendo o caminho interrompido pela rocha, deteve-se, estupidamente perplexo. Um momento após, eu já o havia acorrentado ao granito, pois que, em sua superfície, havia duas argolas de ferro, separadas uma da outra, horizontalmente, por um espaço de cerca de dois pés. De uma delas pendia uma corrente; da outra, um cadeado. Lançar a corrente em torno de sua cintura, para prendê-lo, foi coisa de segundos. Ele estava demasiado atônito para oferecer qualquer resistência.
Retirando a chave, recuei alguns passos.
- Passe a mão pela parede – disse-lhe eu. – Não poderá deixar de sentir o salitre. Está, com efeito, muito úmida. Permita-me, ainda uma vez, que lhe implore para voltar. Não? Então, positivamente, tenho de deixá-lo. Mas, primeiro, devo prestar-lhe todos os pequenos obséquios ao meu alcance.
- O Amontillado! – exclamou o meu amigo, que ainda não se refizera de seu assombro.
- É verdade – respondi -, o Amontillado.
E, dizendo essas palavras, pus-me a trabalhar entre a pilha de ossos a que já me referi. Jogando-os para o lado, deparei logo com uma certa quantidade de pedras de construção e argamassa. Com este material e com a ajuda de minha colher de pedreiro, comecei ativamente a tapar a entrada do nicho.
Mal assentara a primeira fileira de minha obra de pedreiro, quando descobri que a embriaguez de Fortunato havia, em grande parte, se dissipado. O primeiro indício que tive disso foi um lamentoso grito, vindo do fundo do nicho. Não era o grito de um homem embriagado. Depois, houve um longo e obstinado silêncio. Coloquei a segunda, a terceira e a quarta fileiras. Ouvi, então, as furiosas sacudidas da corrente. O ruído prolongou-se por alguns minutos, durante os quais, para deleitar-me com ele, interrompi o meu trabalho e sentei-me sobre os ossos. Quando, por fim, o ruído cessou, apanhei de novo a colher de pedreiro e acabei de colocar, sem interrupção, a quinta, a sexta e a sétima fileiras. A parede me chegava, agora, até a altura do peito. Fiz uma nova pausa e, segurando a vela por cima da obra que havia executado, dirigi a fraca luz sobre a figura que se achava no interior.
Uma sucessão de gritos altos e agudos irrompeu, de repente, da garganta do vulto acorrentado, e pareceu impelir-me violentamente para trás. Durante breve instante, hesitei… tremi. Saquei de minha espada e pus-me a desferir golpes no interior do nicho; mas um momento de reflexão bastou para tranqüilizar-me. Coloquei a mão sobre a parede maciça da catacumba e senti-me satisfeito. Tornei a aproximar-me da parede e respondi aos gritos daquele que clamava. Repeti-os, acompanhei-os e os venci em volume e em força. Fiz isso, e o que gritava acabou por silenciar.
Já era meia-noite, a minha tarefa chegava ao fim. Completara a oitava, a nona e a décima fileiras. Havia terminado quase toda a décima primeira – e restava apenas uma pedra a ser colocada e rebocada em seu lugar. Ergui-a com grande esforço, pois que pesava muito, e coloquei-a, em parte, na posição a que se destinava. Mas, então, saiu do nicho um riso abafado que me pôs os cabelos em pé. Seguiu-se-lhe uma voz triste, que tive dificuldade em reconhecer como sendo a do nobre Fortunato. A voz dizia:
- Ah! ah! ah! . . . eh! eh! eh! . . . Esta é uma boa piada… uma excelente piada! Vamos rir muito no palazzo por causa disso . . . ah! ah! ah! . . . por causa do nosso vinho… ah! ah! ah!
- O Amontillado! – disse eu.
- Ah! ah! ah! . . . sim, sim . . . o Amontillado. Mas não está ficando tarde? Não estarão nos esperando no palácio. . . a Sra. Fortunato e os outros? Vamos embora.
- Sim – respondi -, vamos embora.
- Pelo amor de Deus, Montresor!
- Sim – respondi -, pelo amor de Deus!
Mas esperei em vão qualquer resposta a estas palavras. Impacientei-me.
Gritei, alto:
- Fortunato!
Nenhuma resposta.
Tornei a gritar:
- Fortunato!
Ainda agora, nenhuma resposta. Introduzi uma vela pelo orifício que restava e deixei-a cair dentro do nicho. Chegou até mim, como resposta, apenas um tilintar de guizos. Senti o coração opresso, sem dúvida devido à umidade das catacumbas. Apressei-me para terminar o meu trabalho. Com esforço, coloquei em seu lugar a última pedra – e cobri-a com argamassa. De encontro à nova parede, tornei a erguer a antiga muralha de ossos. Durante meio século, mortal algum os perturbou.
A “Morte Escarlate” havia muito devastava o país. Jamais se viu peste tão fatal ou tão hedionda. O sangue era sua revelação e sua marca ? a cor vermelha e o horror do sangue. Surgia com dores agudas e súbita tontura, seguidas de profuso sangramento pelos poros, e então a morte. As manchas rubras no corpo e principalmente no rosto da vítima eram o estigma da peste que a privava da ajuda e compaixão dos semelhantes. E entre o aparecimento, a evolução e o fim da doença não se passava mais de meia hora.
Mas o príncipe Próspero era feliz, destemido e astuto. Quando a população de seus domínios se reduziu à metade, mandou vir à sua presença um milhar de amigos sadios e divertidos dentre os cavalheiros e damas da corte e com eles retirou-se, em total reclusão, para um dos seus mosteiros encastelados. Era uma construção imensa e magnífica, criação do gosto excêntrico, mas grandioso do próprio príncipe. Circundava-a a muralha forte e muito alta, com portas de ferro. Depois de entrarem, os cortesãos trouxeram fornalhas e grandes martelos para soldar os ferrolhos. Resolveram não permitir qualquer meio de entrada ou saída aos súbitos impulsos de desespero do que estavam fora ou aos furores do que estavam dentro. O mosteiro dispunha de amplas provisões. Com essas precauções, os cortesãos podiam desafiar o contágio. O mundo externo que cuidasse de si mesmo. Nesse meio-tempo era tolice atormentar-se ou pensar nisso. O príncipe havia providenciado toda a espécie de divertimentos. Havia bufões, improvisadores, dançarinos, músicos, Beleza, vinho. Lá dentro, tudo isso mais segurança. Lá fora, a “Morte Escarlate”.
Lá pelo final do quinto ou sexto mês de reclusão, enquanto a peste grassava mais furiosamente lá fora, o príncipe Próspero brindou os mil amigos com um magnífico baile de máscaras.
Era um espetáculo voluptuoso, aquela mascarada. Mas antes vou descrever onde ela aconteceu. Eram sete ? um suíte imperial. Em muitos palácios, porém, essas suítes formam uma perspectiva longa e reta, quando as portas se abrem até se encostarem nas paredes de ambos os lados, de tal modo que a vista de toda essa sucessão é quase desimpedida. Ali, a situação era muito diferente, como se devia esperar da paixão do duque pelo fantástico. Os salões estavam dispostos de maneira tão irregular que os olhos só podiam abarcar pouco mais de cada um por vez. Havia um desvio abrupto a cada vinte ou trinta metros e, a cada desvio, um efeito novo. À direita e à esquerda, no meio de cada parede, uma alta e estreita janela gótica dava para um corredor fechado que acompanhava as curvas da suíte. A cor dos vitrais dessas janelas variava de acordo com a tonalidade dominante na decoração do salão para o qual se abriam. O da extremidade leste, por exemplo, era azul ? e de um azul intenso eram suas janelas. No segundo salão os ornamentos e tapeçarias, assim como as vidraças, eram cor de púrpura. O Terceiro era inteiramente verde, e verdes também os caixilhos das janelas. O quarto estava mobiliado e iluminado com cor alaranjada ? o quinto era branco, e o sexto, roxo. O sétimo salão estava todo coberto por tapeçarias de veludo negro, que pendiam do teto e pelas paredes, caindo em pesadas dobras sobre um tapete do mesmo material e tonalidade. Apenas nesse salão, porém, a cor das janelas deixava de corresponder à das decorações. AS vidraças, ali, eram escarlates ? uma violenta cor de sangue.
Ora, em nenhum dos sete salões havia qualquer lâmpada ou candelabro, em meio à profusão de ornamentos de ouro espalhados por todos os cantos ou dependurados do teto. Nenhuma lâmpada ou vela iluminava o interior da seqüência de salões. Mas nos corredores que circundavam a suíte havia, diante de cada janela, um pesado tripé com um braseiro, que projetava seus raios pelos vitrais coloridos e, assim, iluminava brilhantemente a sala, produzindo grande número de efeitos vistosos e fantásticos. Mas no salão oeste, ou negro, o efeito do clarão de luz que jorrava sobre as cortinas escuras através das vidraças da cor do sangue era desagradável ao extremo e produzia uma expressão tão desvairada no semblante do que entravam que poucos no grupo sentiam ousadia bastante para ali penetrar.
Era também nesse apartamento que se achava, encostado à parede oeste, um gigantesco relógio de ébano. Seu pêndulo oscilava de um lado para o outro com um bater surdo, pesado, monótono; quando o ponteiro dos minutos completava o circuito do mostrador e o relógio ia dar as horas, de seus pulmões de bronze brotava um som claro e alto e grave e extremamente musical, mas em tom tão enfático e peculiar que, ao final de cada hora, os músicos da orquestra se viam obrigados a interromper momentaneamente a apresentação para escutar-lhe o som; com isso os dançarinos forçosamente tinham de parar as evoluções da valsa e, por um breve instante, todo o alegre grupo mostrava-se perturbado; enquanto ainda soavam os carrilhões do relógio, observava-se que os mais frívolos empalideciam e os mais velhos e serenos passavam a mão pela teste, como se estivessem num confuso devaneio ou meditação. Mas, assim que os ecos desapareciam interiormente, risinhos levianos logo se riam do próprio nervosismo e insensatez e, em sussurros, diziam uns aos outros que o próximo soar de horas não produziria neles a mesma emoção; mas, após um lapso de sessenta minutos (que abrangem três mil e seiscentos segundos do Tempo que voa), quando o relógio dava novamente as horas, acontecia a mesma perturbação e idênticos tremores e gestos de meditação de antes.
Apesar disso tudo, que festa alegre e magnífica! Os gosto do duque eram estranhos. Sabia combinar cores e efeitos. Menosprezando a mera decoração da moda, seus arranjos mostravam-se ousados e veementes, e suas idéias brilhavam com um esplendor bárbaro. Alguns podiam considerá-lo louco, sendo desmentidos por seus seguidores. Mas era preciso ouvi-lo, vê-lo e tocá-lo para convencer-se disso.
Para essa grande festa, ele próprio dirigiu, em grande parte, a ornamentação cambiante dos sete salões, e foi seu próprio gosto que inspirou as fantasias dos foliões. Claro que eram grotescas. Havia muito brilho, resplendor, malícia e fantasia ? muito daquilo que foi visto depois no Hernani. Havia figuras fantásticas com membros e adornos que não combinavam. Havia caprichos delirantes como se tivessem sido modelados por um louco. Havia muito de beleza, muito de libertinagem e de extravagância, algo de terrível e um tanto daquilo que poderia despertar repulsa. De um ao outro, pelos sete salões, desfilava majestosamente, na verdade, uma multidão de sonhos. E eles ? os sonhos ? giravam sem parar, assumindo a cor de cada salão e fazendo com que a impetuosa música da orquestra parecesse o eco de seus passos. Daí a pouco soa o relógio de ébano colocado no salão de veludo. Então, por um momento, tudo se imobiliza e é tudo silêncio, menos a voz do relógio. Os sonhos se congelam como estão. Mas os ecos das batidas extinguem-se ? duraram apenas um instante ? e risos levianos, mal reprimidos, flutuam atrás dos ecos, à medida que vão morrendo. E logo a música cresce de novo, e os sonhos revivem e rodopiam mais alegremente que nunca, assumindo as cores das muitas janelas multicoloridas, através das quais fluem os raios luminosos dos tripés. Ao salão que fica a mais oeste de todos os sete, porém, nenhum dos mascarados se aventura agora; pois a noite está se aproximando do fim: ali flui uma luz mais vermelha pelos vitrais cor de sangue e o negror das cortinas escuras apavora; para aquele que pousa o pé no tapete negro, do relógio de ébano ali perto chega um clangor ensurdecido mais solene e enfático que aquele que atinge os ouvidos dos que se entregam às alegrias nos salões mais afastados.
Mas nesses outros salões cheios de gente batia febril o coração da vida. E o festim continuou em remoinhos até que, afinal, começou a soar meia-noite no relógio. Então a música cessou, como contei, as evoluções dos dançarinos se aquietaram, e, como antes, tudo ficou intranqüilamente imobilizado. Mas agora iriam ser doze as badaladas do relógio; e desse modo mais pensamentos talvez tenham se infiltrado, por mais tempo, nas meditações dos mais pensativos, entre aqueles que se divertiam. E assim também aconteceu, talvez, que, antes de os últimos ecos da última badalada terem mergulhado inteiramente no silêncio, muitos indivíduos na multidão puderam perceber a presença de uma figura mascarada que antes não chamara a atenção de ninguém. E, ao se espalhar em sussurros o rumor dessa nova presença, elevou-se aos poucos de todo o grupo um zumbido ou murmúrio que expressava a reprovação e surpresa ? e, finalmente, terror, horror e repulsa.
Numa reunião de fantasmas como esta que pintei, pode-se muito bem supor que nenhuma aparência comum poderia causar tal sensação. Na verdade, a liberdade da mascarada dessa noite era praticamente ilimitada; mas a figura em questão ultrapassava o próprio Herodes, indo além dos limites até do indefinido decoro do príncipe. Existem cordas, nos corações dos mais indiferentes, que não podem ser tocadas sem emoção. Até para os totalmente insensíveis, para quem a vida e morte são alvo de igual gracejo, existem assuntos com os quais não se pode brincar. Na verdade, todo o grupo parecia agora sentir profundamente que na fantasia e no rosto do estranho não existia graça nem decoro. A figura era alta e esquálida, envolta do pés a cabeça em veste mortuárias. A máscara que escondia o rosto procurava assemelhar-se de tal forma com a expressão enrijecida de um cadáver que até mesmo o exame mais atento teria dificuldade em descobrir o engano. Tudo isso poderia ter sido tolerado, e até aprovado, pelos loucos participantes da festa, se o mascarado não tivesse ousado encarnar o tipo da Morte Escarlate. Seu vestuário estava borrifado de sangue ? e sua alta testa, assim como o restante do rosto, salpicada com o horror escarlate.
Quando os olhos do príncipe Próspero pousaram nessa imagem espectral (que andava entre os convivas com movimentos lentos e solenes, como se quisesse manter-se à altura do papel), todos perceberam que ele foi assaltado por um forte estremecimento de terror ou repulsa, num primeiro momento, mas logo o seu semblante tornou-se vermelho de raiva.
- Quem ousa… ? perguntou com voz rouca aos convivas que estavam perto ? quem ousa nos insultar com essa caçoada blasfema? Peguem esse homem e tirem sua máscara, para sabermos quem será enforcado no alto dos muros, ao amanhecer!
O príncipe Próspero estava na sala leste, ou azul, ao dizer essas palavras. Elas ressoaram pelos sete salões, altas e claras, pois o príncipe era um homem ousado e robusto e a música se calara com um sinal de sua mão.
O príncipe achava-se no salão azul com um grupo de pálidos convivas ao seu lado. Assim que falou, houve um ligeiro movimento dessas pessoas na direção do intruso, que, naquele momento, estava bem ao alcance das mãos, e agora, com passos decididos e firmes, se aproximava do homem que tinha falado. Mas por causa de um certo temor sem nome, que a louca arrogância do mascarado havia inspirado em toda a multidão, não houve ninguém que estendesse a mão para detê-lo; de forma que, desimpedido , passou a um metro do príncipe e, enquanto a vasta multidão, como por um único impulso, se retraía do centro das salas para as paredes, ele continuou seu caminho sem deter-se, no mesmo passo solene e medido que o distinguira desde o inicio, passando do salão azul para o púrpura ? do púrpura para o verde ? do verde para o alaranjado ? e desse ainda para o branco ? e daí para o roxo, antes que se fizesse qualquer movimento decisivo para dete-lo. Foi então que o príncipe Próspero, louco de raiva e vergonha por sua momentânea covardia, correu apressadamente pelos seis salões, sem que ninguém o seguisse por causa do terror mortal que tomara conta de todos. Segurando bem alto um punhal desembainhado, aproximou-se, impetuosamente, até cerca de um metro do vulto que se afastava, quando este, ao atingir a extremidade do salão de veludo, virou-se subitamente e enfrentou seu perseguidor. Ouviu-se um grito agudo ? e o punhal caiu cintilando no tapete negro, sobre o qual, no instante seguinte, tombou prostrado de morte o príncipe Próspero. Então, reunindo a coragem selvagem do desespero, um bando de convivas lançou-se imediatamente no apartamento negro e, agarrando o mascarado, cuja alta figura permanecia ereta e imóvel à sombra do relógio de ébano, soltou um grito de pavor indescritível, ao descobrir que, sob a mortalha e a máscara cadavérica, que agarravam com tamanha violência e grosseria, não havia qualquer forma palpável.
E então reconheceu-se a presença da Morte Escarlate. Viera como um ladrão na noite. E um a um foram caindo os foliões pelas salas orvalhadas de sangue, e cada um morreu na mesma posição de desespero em que tombou no chão. E a vida do relógio de Ébano dissolveu-se junto com a vida do último dos dissolutos. E as chamas dos braseiros extinguiram-se. E o domínio ilimitado das Trevas, da Podridão e da Morte Escarlate estendeu-se sobre tudo.
Há certos temas de interesse totalmente absorventes mas por demais horríveis para os fins da legítima ficção. O simples romancista deve evitá-los se não deseja ofender ou desgostar. Só devem ser convenientemente utilizados quando a severidade e a imponência da verdade os santificam e sustentam. Estremecemos, por exemplo, com o mais intenso "pesar agradável", diante das narrativas da Passagem do Beresina, do Terremoto de Lisboa, da Peste em Londres, do Massacre de São Bartolomeu, ou da asfixia dos cento e vinte três prisioneiros da Caverna Negra em Calcutá. Mas nessas narrativas é o fato, é a realidade, é a história o que excita. Como invenções, olhá-las-íamos com simples aversão.
Mencionei algumas, apenas, das mais proeminentes e augustas calamidades que a história registra. Mas nelas existe a extensão, bem como o caráter, de calamidade, que tão vivamente impressiona a fantasia. Não é necessário lembrar ao leitor que, do longo e pavoroso catálogo das misérias humanas, poderia eu ter selecionado numerosos exemplos individuais mais repletos de sofrimento essencial que qualquer daqueles vastos desastres generalizados. A verdadeira desgraça, na verdade, o derradeiro infortúnio, é particular e não difuso. Demos graças a um Deus misericordioso pelo fato de serem os espantosos extremos da agonia suportados pelo homem-unidade e nunca pelo homem-massa!
Ser enterrado vivo é, fora de qualquer dúvida, o mais terrífico daqueles extremos que já couberam por sorte aos simples mortais. Que isso haja acontecido freqüentemente, e bem freqüentemente, mal pode ser negado por aqueles que pensam. Os limites que separam a Vida da Morte são, quando muito, sombrios e vagos. Quem poderá dizer onde uma acaba e a outra começa? Sabemos que há doenças em que ocorre total cessação de todas as aparentes funções de vitalidade, mas, de fato, essas cessações são meras suspensões, propriamente ditas. Não passam de pausas temporárias no incompreensível mecanismo. Certo período decorre e alguns princípios misteriosos e invisíveis põem de novo em movimento os mágicos parafusos e as encantadas rodas. A corda de prata não estava solta para sempre, nem o globo de ouro irreparavelmente quebrado. Mas, entrementes, onde se achava a alma?
De parte, porém, a inevitável conclusão, a priori, de que causas tais devem produzir tais efeitos, de que a bem conhecida ocorrência de tais casos de interrompida animação deve, naturalmente, dar azo, de vez em quando, a enterros prematuros, de parte esta consideração temos o testemunho direto da experiência médica e da experiência comum a provar que grande número de semelhantes enterros se tem realmente realizado. Se fosse necessário, poderia referir-me imediatamente a uma centena de casos bem autenticados. Um dos mais famosos, e cujas circunstâncias podem estar ainda frescas na memória de alguns de meus leitores, ocorreu, não faz muito, na vizinha cidade de Baltimore, onde causou uma excitação penosa, intensa e de vasto alcance. A esposa de um dos mais respeitáveis cidadãos, advogado eminente e membro do Congresso, foi atacada de súbita e estranha moléstia que zombou completamente do saber de seus médicos. Depois de muitos sofrimentos veio a falecer, ou supôs-se que houvesse falecido. Ninguém suspeitava, na verdade, nem tinha razão de suspeitar, que ela não estivesse realmente morta. Apresentava todos os sinais habituais de morte. O rosto tomara o usual contorno cadavérico. Os lábios tinham a habitual palidez marmórea. Os olhos estavam sem brilho. Não havia calor. A pulsação cessara. Durante três dias o corpo foi conservado insepulto, adquirindo então uma rigidez de pedra. Afinal, o enterro foi apressado, por causa do rápido avanço do que se supunha ser a decomposição.
A mulher fora depositada no jazigo da família, que não foi aberto nos três anos subseqüentes. Ao expirar esse prazo, abriram-no para receber um ataúde; mas, ai!, que pavoroso choque esperava o marido que abrira em pessoa a porta. Ao se escancararem os portais, certo objeto branco caiu-lhe ruidosamente nos braços. Era o esqueleto de sua mulher, ainda com a mortalha intacta.
Cuidadosa investigação tornou evidente que ela recuperara a vida dois dias depois de seu enterro; que sua luta dentro do ataúde fizera-o cair de uma saliência ou prateleira, no chão, onde se quebrara, permitindo-lhe escapar. Uma lâmpada que fora, por acaso, deixada cheia de óleo dentro do jazigo foi encontrada vazia; contudo, poderia ter sido esgotada pela evaporação. No alto dos degraus que levavam à câmara mortuária, havia um grande fragmento do caixão, com o qual, parecia, tinha ela tentado chamar a atenção batendo na porta de ferro. Enquanto assim fazia, provavelmente desfaleceu ou possivelmente morreu tomada de terror completo e, ao cair, sua mortalha ficou presa a algum pedaço de ferro saliente no interior. E assim ela permaneceu e assim apodreceu, ereta.
No ano de 1810, um caso de inumação viva aconteceu na França, cercado de circunstâncias que provam plenamente a afirmativa de que a verdade é, de fato, mais estranha do que a ficção. A heroína da história era Mademoiselle Vitorina Lafourcade, moça de ilustre família, rica e de grande beleza pessoal. Entre seus numerosos pretendentes havia um tal Julien Bossuet, pobre literato ou jornalista de Paris. Seu talento e sua amabilidade tinham atraído a atenção da herdeira, por quem parecia ter sido verdadeiramente amado; mas o orgulho de seu nascimento decidiu-a, por fim, a repeli-lo e a casar-se com um certo Monsieur Renelle, banqueiro e diplomata de certa importância. Depois do casamento, porém, esse cavalheiro a desprezou e, talvez mesmo mais positivamente, maltratou-a. Tendo passado a seu lado alguns anos infelizes, ela morreu; pelo menos, seu aspecto se assemelhava tão de perto à morte que enganava a qualquer que a visse. Foi enterrada, não num jazigo, mas num sepulcro comum, na vila onde nascera. Cheio de desespero e ainda inflamado pela lembrança de sua profunda afeição, o apaixonado viajou da capital para a longínqua província em que se achava a aldeia, no romântico propósito de desenterrar o cadáver e apossar-se de suas fartas madeixas. Chegou ao túmulo. À meia-noite desenterrou o caixão, abriu-o e, ao cortar-lhe o cabelo, foi detido pelos olhos abertos de sua amada. De fato, a mulher tinha sido enterrada viva. A vitalidade ainda não desaparecera de todo e ela foi despertada pelas carícias de seu amado do letargo que fora tomado como morte. Ele a levou, nervosamente, para seus aposentos na aldeia. Empregou certos poderosos analépticos sugeridos por seus não pequenos conhecimentos médicos. Por fim, ela reviveu. Reconheceu seu salvador. Permaneceu com ele até que, gradativamente, recobrou por completo a primitiva saúde. Seu coração de mulher não tinha a dureza dos diamantes e essa última lição de amor bastou para abrandá-lo. Concedeu-o a Bossuet. Não voltou à companhia do marido; mas, ocultando dele a sua ressurreição, fugiu com seu amante para a América. Vinte anos depois, ambos voltaram à França, persuadidos de que o tempo tinha alterado tão grandemente o aspecto da mulher que seus amigos seriam incapazes de reconhecê-la. Enganaram-se, porém, porque, ao primeiro encontro, Monsieur Renelle reconheceu logo e reclamou sua mulher, Ela se opôs a essa reclamação e um tribunal de justiça apoiou-a, decidindo que as circunstâncias peculiares e o longo lapso de anos haviam extinguido, não só eqüitativa, mas legalmente, a autoridade do marido.
O Jornal de Cirurgia de Lipsia, periódico de alta autoridade e mérito, que alguns livreiros americanos fariam bem em traduzir e republicar, relembra num dos últimos números um acontecimento bem penoso dessa mesma espécie.
Um oficial de artilharia, homem de gigantesca estatura e vigorosa saúde, tendo sido atirado de um cavalo indomável, recebeu fortíssima contusão na cabeça que o tornou imediatamente insensível. O crânio ficou levemente fraturado, mas não se temia imediato perigo. A trepanação foi executada com pleno êxito. Sangraram-no e puseram-se em execução vários outros meios comuns de alívio. Gradualmente, porém, foi ele mergulhando, cada vez mais, num estado de desesperado torpor e, finalmente, pensou-se que havia morrido.
O tempo era de calor, e enterraram-no, com pressa censurável, num dos cemitérios públicos. Seu enterro realizou-se na quinta-feira. No domingo seguinte o cemitério, como de costume, encheu-se de visitantes e, ao meio-dia, produziu-se intensa excitação quando um camponês declarou que, tendo-se sentado sobre o túmulo do oficial, sentira distintamente um movimento da terra, como se ocasionado por alguém que lutasse ali embaixo. A princípio, pouca atenção foi dada à afirmativa do homem, mas seu evidente terror e a teimosia obstinada com que persistia em sua história produziram, afinal, natural efeito sobre a multidão. Procuraram-se, às pressas, pás e o túmulo, que era vergonhosamente pouco profundo, foi em poucos minutos tão depressa escavado que a cabeça do seu ocupante apareceu; ele estava, então, aparentemente morto, mas sentara-se quase ereto dentro do caixão cuja tampa, na sua luta furiosa, havia parcialmente soerguido.
Foi imediatamente transportado ao mais próximo hospital e ali declarou-se que ele estava ainda vivo, embora em estado de asfixia. Depois de algumas horas, reviveu, reconheceu pessoas de sua amizade e, em frases entrecortadas, narrou as agonias que sofrera na sepultura.
Pelo que ele relatou ficou patente que devera ter estado consciente de perder os sentidos. A sepultura fora descuidada e frouxamente cheia de uma terra excessivamente porosa, e assim algum ar podia, necessariamente, penetrar. Ele ouviu o tropel de passos da multidão por cima de sua cabeça e procurou fazer-se ouvir, por sua vez. Foi o barulho dentro do cemitério, disse ele, que pareceu despertá-lo de um profundo sono, mas logo que despertou sentiu-se plenamente cônscio do horror pavoroso de sua situação.
Este paciente, conta-se, estava indo bem e parecia achar-se em franco caminho de completo restabelecimento, mas foi vítima do charlatanismo das experiências médicas. Aplicaram-lhe uma bateria elétrica e ele, de repente, expirou num daqueles extáticos paroxismos que ela ocasionalmente provoca.
A menção da bateria elétrica, aliás, traz-me à memória um caso bem conhecido e extraordinário, em que sua ação provou-se eficaz em fazer voltar à vida um jovem procurador londrino que estivera enterrado durante oito dias. Isto ocorreu em 1831, e causou, em seu tempo, profundíssima sensação em toda a parte em que se tornasse o assunto da conversa.
O paciente, Sr. Eduardo Stapleton, tinha morrido, parece, de tifo, com certos sintomas anômalos que haviam excitado a curiosidade de seus médicos assistentes. A respeito dessa morte aparente, solicitou-se de seus amigos que permitissem um exame post mortem, mas eles se negaram a consentir nisso. Como acontece muitas vezes quando se fazem tais recusas, os profissionais resolveram desenterrar o corpo e dissecá-lo, com vagar, por sua conta. Realizaram-se facilmente os preparativos, com os numerosos grupos de desenterradores de cadáveres, então muito encontradiços em Londres e, na terceira noite depois do funeral, o suposto cadáver foi desenterrado duma cova de dois metros e quarenta de profundidade e depositado na sala de operações de um dos hospitais particulares.
Uma incisão de certo tamanho fora já feita no abdômen, quando a aparência fresca e incorrupta do paciente sugeriu que se fizesse aplicação duma bateria. As experiências se sucederam e sobrevieram os efeitos costumeiros, sem nada que, de algum modo, os caracterizasse, exceto, numa ou duas ocasiões, certo grau um pouco incomum de vivacidade na ação convulsiva.
Fazia-se tarde. O dia estava prestes a raiar e achou-se, afinal, que era conveniente proceder, sem demora, à dissecação. Um estudante, porém, estava especialmente desejoso de provar certa teoria sua e insistiu em que se aplicasse a bateria num dos músculos peitorais. Deu-se um grosseiro talho e aplicou-se apressadamente um fio; então o paciente, num movimento ligeiro, mas não convulsivo, ergueu-se da mesa, andou até o meio do soalho, olhou inquieto por instantes em redor de si e depois... falou. Não se podia entender o que dizia, mas as palavras eram ditas e a formação das sílabas distinta. Depois de falar, caiu pesadamente no soalho.
Por alguns instantes todos ficaram paralisados de terror, mas a urgência do caso em breve os fez recuperar a presença de espírito. Via-se que o Sr. Stapleton estava vivo, embora desmaiado. Com aplicações de éter reviveu e, sem demora, recuperou a saúde, voltando ao convívio de seus amigos, dos quais, porém, todo conhecimento de sua ressurreição fora oculto, até passar o perigo de uma recaída. Podem imaginar-se sua admiração e seu arrebatador espanto.
A mais emocionante particularidade desse incidente, contudo, consiste no que o próprio Sr. Stapleton afirma. Declara ele que em nenhuma ocasião esteve totalmente insensível; que vaga e confusamente tinha consciência de tudo quanto lhe acontecia, desde o momento em que foi declarado morto pelos médicos, até aquele em que desmaiou no soalho do hospital. "Eu estou vivo" foram as palavras incompreendidas que, ao reconhecer que se achava numa sala de dissecação, tinha tentado pronunciar, naquela hora extrema.
Seria coisa fácil multiplicar histórias como esta, mas abstenho-me disso porque, na verdade, não temos necessidade de tal coisa para demonstrar que, efetivamente, ocorrem enterros prematuros. Quando refletimos, dada a natureza do caso, quão raramente nos é possível descobri-los, devemos admitir que eles possam ocorrer freqüentemente sem que o saibamos. É raro, na verdade, que um cemitério seja revolvido, alguma vez, com qualquer propósito e em grande extensão, e não se encontrem esqueletos em posições que sugerem as mais terríveis suspeitas.
Terrível, na verdade, a suspeita, porém mais terrível é tal destino! Podemos asseverar, sem hesitação, que nenhum acontecimento é tão horrivelmente capaz de inspirar o supremo desespero do corpo e do espírito como ser enterrado vivo. A insuportável opressão dos pulmões, os vapores sufocantes da terra úmida, o contato dos ornamentos fúnebres, o rígido aperto das tábuas do caixão, o negror da noite absoluta, o silêncio como um ar que nos afoga, a invisível, porém sensível, presença do Verme Conquistador, tudo isso, com a idéia do ar e da relva lá em cima, a lembrança dos queridos amigos que acorreriam a nos salvar se informados de nosso destino, e a consciência de que eles jamais poderão ser informados desse destino, e de que nossa desesperada sorte é a do realmente morto, essas considerações, digo, acarretam ao coração que ainda palpita um grau tal de horror espantoso e intolerável que a mais ousada imaginação recua diante dele. Nada conhecemos de maior agonia sobre a terra. Não podemos imaginar nem a metade de coisa tão horrível nas regiões do mais profundo inferno. E, por isso, qualquer narrativa a respeito tem interesse profundo; interesse, porém, que, através do sagrado terror do próprio assunto, bem própria e caracteristicamente depende de nossa convicção da verdade do caso narrado. O que tenho agora a contar é do meu real conhecimento, da minha própria, positiva e pessoal experiência.
Durante vários anos estive sujeito a ataques da estranha moléstia que os médicos concordaram chamar catalepsia, na falta de denominação mais definida. Embora tanto as causas imediatas e predisponentes como o verdadeiro diagnóstico desta doença ainda sejam misteriosos, seu caráter claro e evidente já está bastante compreendido. Suas variações parecem ser, principalmente, de grau. Às vezes, o paciente jaz, durante um dia só, ou mesmo durante curto período, numa espécie de exagerada letargia. Perde a sensibilidade e os movimentos, mas a pulsação do coração é ainda fracamente perceptível; alguns restos de calor permanecem; ligeiro colorido se mantém no centro da face; e, aplicando um espelho à boca, pode-se descobrir uma lenta, desigual e vacilante ação dos pulmões. Outras vezes, a duração do transe é de semanas ou mesmo de meses, e a mais severa investigação, as mais rigorosas experiências médicas não conseguem estabelecer qualquer distinção material entre o estado do paciente e o que concebemos como morte absoluta.
Freqüentes vezes é ele salvo do enterro prematuro apenas por saberem seus amigos que fora anteriormente sujeito a ataques catalépticos, pela conseqüente suspeita suscitada e, acima de tudo, pela aparência incorrupta. Os progressos da doença são, felizmente, gradativos. As primeiras manifestações, além de típicas, são inequívocas. Os acessos se tornam, sucessivamente, cada vez mais distintos, prolongando-se cada um mais do que o anterior. Nisto jaz a principal garantia contra a inumação. O infeliz cujo primeiro ataque for de caráter extremo, como ocasionalmente se vê, estará quase sem remédio condenado a ser enterrado vivo.
Meu próprio caso não diferia, em pormenores importantes, dos mencionados nos livros médicos. As vezes, sem nenhuma causa aparente, eu mergulhava, pouco a pouco, num estado de semi-síncope ou semidesmaio; e neste estado, sem dor, sem possibilidade de mover-me ou, estritamente falando, de pensar, mas com uma nevoenta e letárgica consciência da vida e da presença dos que cercavam minha cama, eu permanecia até que a crise da doença me fizesse recuperar, de súbito, a completa sensação. Outras vezes, era rápida e impetuosamente surpreendido pelo ataque. Sentia-me doente, entorpecido, frio, aturdido e caía logo prostrado. Depois, durante semanas, tudo era vácuo, negror, silêncio, e num nada se transformava o universo. Não poderia haver mais total aniquilação. Destes últimos ataques eu despertava, porém, com lentidão gradativa na proporção da subitaneidade do acesso. Da mesma forma por que o dia alvorece para o mendigo, sem lar e sem amigos, que vaga pelas ruas, através da longa e desolada noite de inverno, assim também tardia, assim também cansada, assim também alegre, voltava a luz à minha alma.
Exceto aquela predisposição para o ataque, meu estado geral de saúde apresentava-se bom; nem eu podia perceber que todo ele se achava afetado por uma doença predominante, a menos que, realmente, certa reação em meu sono comum pudesse ser olhada como mais um sintoma. Logo ao despertar, nunca podia de imediato assenhorar-me de meus sentidos e sempre permanecia, durante muitos minutos, em grande confusão e perplexidade, com as faculdades mentais em geral, e especialmente a memória, num estado de absoluto torpor.
Em tudo isso que eu experimentava não havia sofrimento físico, mas infinita angústia moral. Minha imaginação se tornava macabra. Falava de "vermes, de covas e epitáfios". Perdia-me em devaneios de morte e a idéia do enterro prematuro se apossava de contínuo de meu cérebro. O horrendo perigo a que estava sujeito assombrava-me dia e noite. De dia, a tortura da meditação era excessiva; de noite, suprema. Quando a disforme Escuridão inundava a terra, com todo o horror do pensamento eu tremia, tremia como as plumas palpitantes que adornam os carros fúnebres. Quando a natureza não podia mais suportar a insônia, era com relutância que eu consentia em dormir, pois me abalava o pensar que, ao despertar, poderia achar-me como habitante de um túmulo. E quando, finalmente, mergulhava no sono, era apenas para precipitar-me imediatamente num mundo de fantasmas acima do qual, com asas enormes, lúridas, tenebrosas, pairava, dominadora, a fixa idéia sepulcral.
Das inúmeras imagens de tristeza que assim me oprimiam em sonhos escolho, para ilustrar, apenas uma visão solitária. Creio que estava imerso num transe cataléptico de duração e intensidade maiores que as habituais. De repente, senti uma mão gelada pousar-se na minha fronte e uma voz, impaciente e inarticulada, sussurrou-me ao ouvido a palavra: "Levanta-te!"
Sentei-me. A escuridão era total. Não podia distinguir o vulto de quem me havia despertado. Não podia recordar-me do momento em que caíra em transe, nem do lugar em que então jazia; enquanto permanecia parado, ocupado em procurar coordenar o pensamento, a fria mão agarrou-me, feroz, pelo punho, sacudindo-o com aspereza, ao mesmo tempo que a voz inarticulada dizia novamente:
— Levanta-te! Não te ordenei que te levantasses?
— Quem és tu? — perguntei.
— Não tenho nome nas regiões onde habito — respondeu a voz, fúnebre. — Eu era mortal, mas sou agora demônio. Eu era implacável, mas agora sou compassivo. Deves sentir que estou tremendo. Meus dentes matraqueiam enquanto falo, embora não seja por causa da frialdade da noite, da noite sem fim. Essa hediondez, porém, é insuportável. Como podes tu dormir tranqüilo? Não posso repousar por causa do clamor dessas grandes agonias. Esse espetáculo é superior às minhas forças. Põe-te de pé! Sai comigo para a noite e deixa que eu te escancare os túmulos. Não é esta uma visão de horror? Contempla!
Olhei, e o vulto invisível que ainda me agarrava pelo punho fez com que se abrissem todos os túmulos da humanidade, e de cada um saiu o fraco palor fosfórico da podridão; e então eu pude ver, dentro dos mais absconsos recessos, pude ver os corpos amortalhados nos seus tristes e solenes sonos com o verme. Mas, ai!, os que dormiam verdadeiramente eram muitos milhões menos do que aqueles que não dormiam absolutamente; e debatiam-se, sem força; havia uma agitação geral e confrangedora; e das profundezas das covas incontáveis se elevava o ruído roçagante e melancólico das mortalhas dos sepultos. E entre aqueles que pareciam tranqüilamente repousar vi que grande número havia mudado, em maior ou menor proporção, a rígida e incômoda posição em que tinham sido primitivamente enterrados. E a voz de novo me disse, enquanto eu contemplava:
— Não é isto, oh!, não é isto uma visão lastimável?
Mas antes que eu pudesse encontrar palavras para replicar, o vulto largou-me o punho, as luzes fosfóricas se extinguiram e as tumbas se fecharam com súbita violência, enquanto delas se erguia um tumulto de clamores desesperados; e ele disse de novo: "Não é isto, meu Deus!, não é isto uma visão lastimável?"
Fantasias como estas que se apresentavam à noite estendiam sua terrífica influência muito além de minhas horas de vigília. Meus nervos se relaxaram inteiramente e me tornei presa de perpétuo horror. Hesitava em cavalgar, em passear ou em praticar qualquer exercício que me afastasse de casa. Na realidade, não ousava mais afastar-me da imediata presença daqueles que sabiam de minha propensão à catalepsia, temendo que, ao cair num de meus costumeiros ataques, viesse a ser enterrado antes de que minha verdadeira condição fosse certificada. Duvidava do cuidado, da fidelidade de meus mais queridos amigos. Receava que, em algum transe de maior duração que a habitual, fossem eles induzidos a considerá-lo como definitivo. Eu mesmo cheguei a ponto de temer que, por causar muito incômodo, ficassem eles satisfeitos em considerar qualquer ataque muito demorado como suficiente escusa para se verem livres de mim de uma vez por todas. Era em vão que eles procuravam tranqüilizar-me com as mais solenes promessas. Exigi os mais sagrados juramentos de que em nenhuma circunstância eles me enterrariam sem que a decomposição estivesse materialmente adiantada, que se tornasse impossível qualquer ulterior preservação. E mesmo assim meus terrores mortais não queriam dar ouvidos à razão, não queriam aceitar consolo. Iniciei uma série de cuidadosas precauções. Entre outras coisas, mandei remodelar o jazigo de família, de modo a facilitar o ser prontamente aberto de dentro. A mais leve pressão sobre uma comprida manivela, que avançava bem dentro do túmulo, causaria a abertura dos portais de ferro. Havia também dispositivos para a livre admissão do ar e da luz e adequados recipientes para comida e água, dentro do imediato alcance do caixão preparado para receber-me. O caixão estava quente e maciamente acolchoado e provido de uma tampa construída de acordo com o sistema da porta do jazigo, com o acréscimo de molas tão engenhosas que o mais fraco movimento do corpo seria suficiente para abri-lo. Além de tudo isto, havia, suspenso do teto do túmulo, um grande sino, cuja corda, como determinei, deveria ser enfiada por um buraco do caixão e amarrada a uma das mãos do cadáver. Mas, ah!, de que vale a vigilância contra o Destino do homem? Nem mesmo aquelas tão engenhosas seguranças bastaram para salvar das extremas agonias de ser enterrado vivo um desgraçado condenado de antemão a essas mesmas agonias!
Chegou uma época – como muitas vezes havia chegado antes – em que me achei emergindo de total inconsciência para o início de um fraco e indefinido senso da existência. Vagarosamente, numa gradação tardígrada, aproximou-se a nevoenta madrugada do dia psicológico. Um torpor incômodo. Um sofrimento apático de obscura dor. Nenhuma atenção, nenhuma esperança, nenhum esforço. Em seguida, após longo intervalo um zumbido nos ouvidos; depois disso, após um lapso de tempo ainda mais longo, um comichão ou sensação de formigueiro nas extremidades; depois, um período aparentemente eterno de aprazível quietude, durante o qual os sentimentos despertos lutam dentro do pensamento; depois, um breve e novo mergulho no nada; depois, uma súbita revivescência. Afinal, o rápido tremer de uma pálpebra, e, imediatamente após, um choque elétrico de terror, mortal e indefinido, que arroja o sangue em torrentes das têmporas para o coração. E agora, o primeiro positivo esforço para pensar. E agora, a primeira tentativa de recordar. E agora, um êxito parcial e evanescente. E agora, a memória já recuperou de tal modo seu domínio que, até certa medida, estou consciente de meu estado. Sinto que não estou despertando de um sono comum. Lembro-me de que estive sujeito à catalepsia. E agora, afinal, como que inundado por um oceano, meu espírito trêmulo é dominado pelo Perigo horrendo, por aquela espectral e tirânica idéia fixa.
Permaneci imóvel alguns minutos, depois que essa imagem se apoderou de mim. E por quê? Eu não podia armar-me de coragem para mover-me. Não ousava fazer o esforço necessário para certificar-me de minha sorte, e, contudo, havia algo no meu coração que me sussurrava que ela era fatal. O desespero – como o de nenhuma outra desgraça que jamais salteou o ser humano – só o desespero me impeliu, após longa irresolução, a erguer as pesadas pálpebras de meus olhos. Ergui-as. Estava escuro, totalmente escuro. Senti que o ataque tinha passado. Senti que a crise de minha doença há muito desaparecera. Senti que me achava agora, completamente, em pleno uso de minhas faculdades visuais. E, contudo, estava escuro, totalmente escuro, daquela escuridão intensa e extrema da Noite que dura para sempre.
Tentei gritar, e meus lábios e minha língua seca moveram-se convulsivamente, em comum tentativa, mas nenhuma voz saiu dos cavernosos pulmões, que, como oprimidos sob o peso de uma esmagadora montanha, arfavam e palpitavam com o coração a cada difícil e penosa respiração.
O movimento das mandíbulas, no esforço de gritar bem alto, mostrava-me que elas estavam amarradas, como se faz usualmente com os mortos. Senti também que jazia sobre alguma coisa sólida e que a mesma coisa também me comprimia estreitamente ambos os lados. Até então eu não me atrevera a mover qualquer dos membros; mas agora, violentamente, levantei os braços que tinham estado até então sobre o peito, com as mãos cruzadas. Eles bateram de encontro a uma madeira sólida, que se estendia sobre mim, a uma altura de não mais do que seis polegadas de meu rosto. Não podia mais duvidar de que repousava dentro de um caixão.
E então, entre todas as minhas infinitas aflições, senti aproximar-se suavemente o anjo da Esperança, pois pensei nas precauções que havia tomado. Retorci-me e fiz esforços espasmódicos para abrir a tampa: não se movia. Tateei os punhos à procura da corda do sino: não foi encontrada. E então o anjo confortador voou para sempre e um desespero ainda mais agudo reinou triunfante, porque clara se tornava a ausência das almofadas que eu tinha tão cuidadosamente preparado, e depois, também, chegou-me subitamente às narinas o forte e característico odor da terra úmida. A conclusão era irresistível. Eu não estava dentro do jazigo. Fora vítima dum de meus ataques enquanto me achava fora de casa e então alguns estranhos, quando ou como não me podia recordar, me enterraram como a um cachorro, trancado dentro de um caixão comum e lançado no fundo, bem no fundo e para sempre, de alguma cova ordinária e sem nome.
Quando essa terrível convicção se fixou à força nos recessos mais íntimos de minha alma, esforcei-me mais uma vez por gritar bem alto. E essa segunda tentativa deu resultado. Um longo, selvagem e contínuo grito, ou bramido de agonia, ressoou através dos domínios da Noite subterrânea.
— Ei! Ei! Olha aqui! — respondeu uma voz grosseira.
— Que diabo é isso agora? — disse um segundo.
— Acabe com isso! — gritou um terceiro.
— Que pretende você berrando desse jeito, como um danado? disse um quarto.
E nisto fui agarrado e sacudido sem cerimônia durante muitos minutos por uma turma de sujeitos mal-encarados Não me despertaram de meu sono, porque eu estava bem desperto quando gritei, mas me fizeram recobrar a plena posse de minha memória.
Esta aventura ocorreu perto de Richmond, na Virgínia. Acompanhado por um amigo eu tinha avançado, seguindo uma expedição de caça, algumas milhas ao longo das margens do rio Jaime. A noite se aproximou e fomos surpreendidos por uma tempestade. O camarote duma pequena chalupa, ancorada no rio e carregada de terra pastosa para jardim, oferecia-se como o único abrigo disponível. Arranjamo-nos o melhor que pudemos para passar a noite a bordo. Adormeci em um dos dois únicos beliches da embarcação. Os beliches duma chalupa de sessenta ou setenta toneladas quase não precisam ser descritos. Aquele que eu ocupava não tinha colchão de espécie alguma. Sua largura extrema era de dezoito polegadas. A distância até o tombadilho, por cima da cabeça, era precisamente a mesma. Fora com excessiva dificuldade que me apertara dentro dele. Apesar de tudo, adormeci profundamente, e toda aquela minha visão, porque não era sonho, nem pesadelo, surgiu naturalmente das circunstâncias de minha posição, do meu habitual pensamento impressionado e da dificuldade, a que já aludi, de recuperar os sentidos e especialmente a memória durante muito tempo depois de despertar de um sono. Os homens que me sacudiram eram da tripulação da chalupa e alguns trabalhadores contratados para descarregá-la. Da própria carga é que provinha aquele cheiro de terra. A ligadura em torno de meus queixos era um lenço de seda em que havia enrolado minha cabeça, na falta de meu costumeiro barrete de dormir.
As torturas experimentadas, porém, eram, sem dúvida, completamente idênticas, no momento, às de uma verdadeira sepultura. Eram pavorosas, eram inconcebivelmente hediondas. Mas do Mal se origina o Bem, porque aqueles paroxismos operaram inevitável revulsão no meu espírito. Minha alma adquiriu tonalidade, adquiriu têmpera. Viajei para o estrangeiro. Fiz vigorosos exercícios. Aspirei o ar livre do Céu. Pensei em outras coisas que não na Morte. Descartei-me de meus livros de medicina. Queimei Buchan. Não li mais os Pensamentos Noturnos, nem aranzéis a respeito de cemitérios, nem histórias de fantasmas como esta. Em resumo, tornei-me um novo homem e vivi vida de homem. Desde aquela memorável noite afugentei para sempre minhas apreensões sepulcrais e com elas esvaneceu-se a doença cataléptica, da qual, talvez, tivessem sido menos a conseqüência que a causa.
Há momentos em que, mesmo aos olhos serenos da Razão, o mundo de nossa triste Humanidade pode assumir o aspecto de um inferno, mas a imaginação do homem não é Carathis para explorar impunemente todas as suas cavernas. Ah! A horrenda legião dos terrores sepulcrais não pode ser olhada de modo tão completamente fantástico, mas, como os Demônios em cuja companhia Afrasiab fez sua viagem até ao Oxus, eles devem dormir ou nos devorarão, devem ser mergulhados no sono ou nós pereceremos.
Documentário em vídeo
Como bem já disse, este post deveria ser pequeno. Sei que já me demorei o bastante para uma vida inteira, então me limito a deixar aos interessados um bom documentário de no máximo uma hora produzido pelo History Channel, dublado em português. O assisti há uns dois anos e confesso que não o re-vi quando cá o acoplei, mas se bem me lembro ele pode dar uma boa noção da vida e obra de Poe de modo geral.